Na missao carismatica

Ad honorem Immaculatae Conceptionis Mariae Na missão carismática

1 AD HONOREM IMMACULATAE CONCEPTIONIS MARIAE Na missão carismática

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3 AD HONOREM IMMACULATAE CONCEPTIONIS MARIAE Na missão carismática conferências Redação: Tomasz Nowaczek MIC Cúria Geral da Congregação dos Padres Marianos Roma / Varsóvia 2022 PROM I C

4 Título original: AD HONOREM IMMACULATAE CONCEPTIONIS MARIAE W charyzmatycznej misji KONFERENCJE Tradução do polonês Mariano Kawka Projeto da capa: Hanna Woźnica-Gierlasińska Ilustração na I página da capa O manuscrito de Norma vitae e o altar portátil com a imagem do olho no triângulo – símbolo da Divina Providência – no Santuário de S. Estanislau Papczyński em Marianki, Góra Kalwaria. IV página da capa Logomarca do jubileu dos 350 da Congregação dos Padres Marianos Composição gráfica e redação técnica Eliza Wiśniewska Para uso interno

5 Sumário Relação de abreviauras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Andrzej PAKUŁA MIC Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Tomasz NOWACZEK MIC Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Tomasz NOWACZEK MIC Janeiro 2023: Pro Christo et ecclesia versus o fluido catolicismo Sobre a fidelidade evangélica. . . . . . . . . . . . . . . . 13 Tomasz NOWACZEK MIC Fevereiro 2023: O gene da misericórdia Sobre a guerra e a paz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 Krzysztof STĄPOR MIC Março 2023: O mariano a serviço dos doentes Sobre a proximidade na doença e no sofrimento. . . . . . . . . 31 Tomasz NOWACZEK MIC Abril 2023: A Oblatio de Papczyński versus o Narciso de Caravaggio Sobre a coragem perdida. 38 Łukasz MAZUREK MIC Maio 2023: Os marianos Sobre os homens verdadeiramente consagrados. . . . . . . . . 47 Tomasz NOWACZEK MIC Junho 2023: Em direção à „juventude do caráter” Sobre a pessoa no ciberespaço . . . . . . . . . . . . . . . . 57

6 Tomasz NOWACZEK MIC Julho 2023: Um anão nos ombros de um gigante Sobre a consciência perdida . 66 Tomasz NOWACZEK MIC Agosto 2023: A vida não é um eufemismo Sobre a esperança da geração de filhos para os estéreis. . . . . . 75 Łukasz MAZUREK MIC Setembro 2023: „Velha” iniciativa, novo homem! Sobre a experiência da misericórdia – da Imaculada Conceição à condição dos marianos hoje . 84 Tomasz NOWACZEK MIC Outubro 2023: O megafone de Deus que anima o mundo surdo Sobre o sofrimento e a morte. . . . . . . . . . . . . . . . 91 Krzysztof STĄPOR MIC Novembro 2023: A vivência do sofrimento pelo mariano dentro da comunidade Sobre a convivência com o sofrimento . . . . . . . . . . . . 100 TOMASZ NOWACZEK MIC Dezembro 2023: Skin in the Game – a cultura de transferir o risco aos outros Sobre a responsabilidade perdida . 106

7 Relação de abreviaturas C Constituições e Diretório da Congregação dos Padres Marianos da Imaculada Conceição da Santíssima Virgem Maria. Editio typica, Cúria Geral dos Padres Marianos, Roma 2018. ChV Exortação apostólica pós-sinodal „Christus vincit” do Santo Padre Francisco aos jovens e a todo o Povo de Deus, Loreto, 15 de março de 2019. CIC Catecismo da Igreja Católica, São Paulo: Edições Loyola 2000. DC Encíclica „Deus caritas est” do Santo Padre Bento XVI aos bispos, presbíteros e diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos sobre o amor cristão, Roma, 25 de dezembro de 2005. EE Congregação dos Institutos de Vida Consagrada e Associações de Vida Apostólica, Elementos essenciais da doutrina da Igreja a respeito da vida consagrada com adaptação aos institutos que se dedicam ao trabalho aposktólico, 31 de maio de 1983. GS Concílio Vaticano II, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo „Gaudium et spes”, Roma, 7 de dezembro de 1965. PF Carta apostólica „Porta Fidei” de Bento XVI anunciando o Ano da Fé, Roma, 7 de dezembro 2011. VC Exortação apostólica pós-sinodal “Vita consecrata” do Santo Padre João Paulo II aos bispos e ao clero, às ordens e congregações religiosas, às associações de vida apostólica, aos institutos leigos e a todos os fiéis sobre a vida consagrada e a sua missão na Igreja e no mundo, Roma, 25 de março de 1996. VN Congregação dos Institutos de Vida Consagrada e Associações de Vida Apostólica, “Vinho novo, odre novo”. A vida consagrada desde o Concílio Vaticano II e seus desafios para o futuro. Direcionamentos, 2017.

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9 Prefácio A publicação Na missão carismática na série Ad honorem Immaculatae Conceptionis Mariae, com a redação do Pe. Tomasz Nowaczek MIC e na maior parte da sua autoria, já é o quarto e o último livro planejado para o tempo do Jubileu dos 350 anos da fundação da Congregação dos Padres Marianos, que encerra o ciclo de reflexões relacionadas com a história, a espiritualidade e o carisma dessa comunidade religiosa fundada em 1670 por S. Estanislau de Jesus e Maria Papczyński. As três publicações anteriores concentraram-se principalmente em questões da área da história e da teologia da espiritualidade da Congregação dos Padres Marianos, em especial: naquilo que diz respeito ao próprio surgimento dessa comunidade, ou seja, ao ato da Oblatio realizado em Cracóvia no dia 11 de dezembro de 1670 pelo Santo Fundador; a seguir ao carisma fundador e aos seus mais importantes elementos; e no ano passado (no terceiro livro) foi empreendida uma reflexão a respeito da extremamente dif ícil história da Congregação e do seu caminho pascal. A presente publicação tem um propósito um pouco diferente. A intenção do Redator, que é o Autor de toda a concepção e da maioria das conferências, é uma tentativa de transpor as reflexões anteriores, ou seja, daquilo que é reconhecido como carisma, para a práxis, tanto para a práxis em relação ao estilo de vida dos Padres Marianos (naturalmente, tratase aqui da qualidade de vida), como também – e talvez sobretudo – para o apostolado; de maneira mais ampla: para toda a atividade exterior da Congregação. Daí o título da presente publicação: Na missão carismática. O Pe. Dr. Tomasz Nowaczek adverte modestamente na Introdução que “nos textos propostos para os dias de recolhimento, seria inútil buscar apelos a violentas transformações ou a um tumulto que possa fazer renascer a Congregação”. Eu, entretanto, sonharia que essas profundas e intensamente estudadas conferências despertassem um tumulto positivo. Porque, se “tumulto”, na língua polonesa corrente significa hoje uma “grande confusão”, ou ainda: “alarde em torno de alguma questão” (raban – Słownik języka polskiego PWN), o melhor fruto seria o despertar de uma séria e até litigiosa discussão a respeito da maneira como o carisma da Congregação fundada por S. Estanislau Papczyński deve ser atualizado e expresso hoje, isto é, no contexto das atuais tendências culturais e mudanças sociais, da

10 atual sensibilidade às necessidades da Igreja e do mundo. Na realidade, é justamente com isso que se relacionam as conferências que o livro apresenta. Aliás percebe isso o próprio Redator, ao escrever esperançoso, um pouco adiante, na Introdução, que gostaria que as suas conferências e as dos dois outros autores (os padres: M.Sc. Krzysztof Stąpor MIC e Dr. Łukasz Mazurek MIC) despertassem “a fé e a coragem para participar da discussão sobre uma pastoral que seja uma emanação da compreensão e da vivência do nosso carisma comunitário”. As questões abordadas da coesão entre a reflexão histórica e a teológico-espiritual e a prática tanto da vida religiosa como da ação apostólica são questões cruciais. A Igreja atual, na pessoa do Papa Francisco, convoca a todos, inclusive as pessoas consagradas, a empreenderem um discernimento espiritual que seja a escuta do Espírito Santo e uma resposta ao Seu chamado. Esse chamado sempre ressoa numa determinada situação histórica e na linguagem da Igreja é chamado interpretação dos sinais do tempo. Sem dúvida, para a Congregação dos Padres Marianos um tal sinal é justamente o Jubileu que está para encerrar-se dos 350 anos do seu surgimento. Fundamentais são, portanto, as indagações a respeito de como, no contexto do Jubileu, estamos interpretando o apelo do Espírito Santo a nós, a que Ele nos convoca, se estamos abertos à Sua voz e prontos a abandonar não somente as nossas concepções e os nossos antigos esquemas de pensamento, mas igualmente os nossos hábitos de vida, os nossos confortos. Em outras palavras: se possuímos aquela novidade e aquele frescor do coração e da mente que nos permite sair das estruturas mentais consolidadas e arriscar o que é desconhecido, o que é novo, o que não está de acordo com as nossas ideias, e o que pode esperar de nós o Espírito Santo. A essas perguntas e a outras semelhantes, embora muitas vezes colocadas de outra forma, procuram encontrar uma resposta os Autores do presente livro. Ao Redator agradeço cordialmente pela original abordagem das questões. Sou grato a todos os Autores pelo esforço empreendido nas pesquisas realizadas, pelo registro dos pensamentos e pela partilha da reflexão. Confio que ela aprofundará o amor à Igreja e à nossa Congregação, que nos familiarizará com muitas questões importantes para a vida e que no final a fortalecerá. Andrzej Pakuła MIC Superior Geral Em Roma, 6 de agosto de 2022. Na festa da Transfiguração do Senhor.

11 Introdução A Comissão Geral do Jubileu preparou para os anos 2019-2023 um programa das comemorações dos 350 anos da fundação da Congregação, que em razão da epidemia ficou inteiramente desatualizado. Não só não chegaram a ser realizados muitos interessantes encontros, simpósios ou congressos planejados para toda a Congregação, mas também nas diversas comunidades domésticas o entusiasmo para os festejos extinguiu-se com muita rapidez. Elementos significativos desse tempo, que permanecerão para sempre na consciência dos marianos, serão: a descoberta e a releitura da Oblatio de Fundador S. Estanislau Papczyński, o belo crucifixo jubilar com a iconografia que representa a essência da nossa vocação e missão carismática, os textos dos dias mensais de recolhimento, e acima de tudo a consciência de que é verdadeira a palavra de Deus quando diz: “Pois os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são os meus – oráculo do Senhor” (Is 55,8). Esperamos que essa consciência se traduzirá na autêntica necessidade de praticar o discernimento espiritual dos sinais dos tempos e na coragem de assumi-los com confiança, a fim de buscar e realizar exclusivamente a vontade d’Aquele que nos escolheu desde a criação do mundo e nos destinou a irmos e produzirmos fruto (cf. Jo 15,16). Tal experiência espiritual pode nos conduzir a sermos uma pessoa que, como de costume, “sem Cristo não tem condições de compreender a sua mais profunda vocação – a origem e o destino da sua vida”1. Tentemos, portanto, lembrando-nos dos mais de 350 anos da história da nossa Congregação, compreender o momento presente da missão carismática que herdamos, que por vontade de Deus exige que sempre seja por nós assumida de nova forma para a Sua glória e a salvação do mundo. Nos textos propostos para os dias de recolhimento seria inútil buscar apelos a violentas transformações ou a um tumulto que possa fazer renascer a Congregação. Eu desejaria, no entanto, que esses textos despertassem em nós a fé e a coragem para participar da discussão sobre uma pastoral 1 Cf. João Paulo II, homilia na Praça da Vitória em Varsóvia de 2 de junho de 1979: https:// www.ekai.pl/dokumenty/homilia-jana-pawla-ii-wygloszona-podczas-mszy-sw-na-placu-zwyciestwa (acesso 28.04.2022).

12 que seja uma emanação da compreensão e da vivência do nosso carisma comunitário, que é um dom de Deus para a Igreja. Algo realmente fantástico seria o engajamento dos coirmãos que com tranquila certeza de si mesmos e da missão mariana possam advertir as pessoas de hoje contra os erros e a cega convicção do pretenso triunfo das ideologias que rejeitam a Deus. Para isso, temos necessidade de uma visão inspirada da forma como a vemos no próprio Fundador, a seguir no Renovador e depois em numerosos padres da Congregação que encontraram os meios adequados para apresentar a Cristo. A inspiração deles era sempre Deus: “Mas o próprio Deus (ao qual sejam dadas eterna, infinita glória e ação de graças), da mesma forma que para esta obra providencialmente, isto é, com amor, misericordiosamente, sabiamente, milagrosamente despertou, Ele mesmo [também] a realizou e realiza pelos séculos eternos”2. Nesse espírito, com a esperança de uma boa vivência do último ano do Jubileu, apresentamos aos Irmãos os presentes textos das reflexões para cada mês do ano 2023. 2 Św. Stanisław Papczyński, Założenie Domu Skupienia, Fundatio Domus Recollectionis, in: Św. Stanisław Papczyński, Pisma zebrane, PROMIC – Wydawnictwo Księży Marianów MIC, Warszawa 2016, p. 1290.

13 Tomasz NOWACZEK MIC Varsóvia, Polônia Janeiro 2023 Pro Christo et Ecclesia contra o fluido catolicismo Sobre a fidelidade evangélica Palavra de Deus: 2Tm 4,2-5 Diante de Deus e do Cristo Jesus que vai julgar os vivos e os mortos, eu te peço com insistência, pela manifestação de Cristo e por seu reinado: proclama a Palavra, insiste oportuna ou inoportunamente, convence, repreende, exorta, com toda a paciência e com a preocupação de ensinar. Pois vai chegar um tempo em que muitos não suportarão a sã doutrina, mas conforme seu gosto se cercarão de uma série de mestres que só atiçam o ouvido. E assim, deixando de ouvir a verdade, eles se desviarão para as fábulas. Tu, porém, vigia em tudo, suporta as provações, faça o trabalho de um evangelizador, desempenha bem o teu ministério. FONTES S. Estanislau Papczyński, Olhar para o fundo do coração de Estanislau de Jesus e Maria, ex-escolápio, Superior da Congregação da Imaculada Conceição dos Padres Recoletos In: Św. Stanisław Papczyński, Pisma zebrane, PROMIC – Editora dos Padres Marianos MIC, Varsóvia 2016, pp. 604-607 – Domingo de Pentecostes “Se alguém me ama, guardará a minha palavra” (Jo 14,23). Reflete que a expressão do perfeito amor é a obediência à doutrina de Deus. Porquanto, da mesma forma que os filhos que devotam um verdadeiro amor a seus pais procuram cumprir commuita exatidão a vontade deles, também aqueles que como filhos de Deus querem fazer parte do número daqueles que amam o bondosíssimo e supremo Pai devem preocupar-se com a observância muito exata dos Seus mandamentos. E, pelo contrário, não é digno

14 de ser chamado filho aquele que é surdo a todos os mandamentos e a quem eles ressoam como uma fábula e que considera muitos deles como desnecessariamente a ele impostos pelo pai. Por isso aquele que não cuida das causas divinas nem pode ser considerado como servo de Deus. Porquanto é destes que se queixa a infinita Bondade desta forma: “Por que me chamais: ‘Senhor! Senhor!’, mas não fazeis o que vos digo?” (Lc 6,46). A ti, portanto, caberá a busca da perfeita união pela honesta observância das leis e da doutrina de Deus e daqueles que são Seus substitutos. “Meu Pai o amará [...]” (Jo 14,23). Reflete como se alegram aqueles servos que pela sua obediência conquistam não apenas os corações dos filhos, mas também dos pais. Visto que granjeiam a benevolência deles e se alegram, visto que com o seu sopro levarão um estilo de vida muito tranquilo. A Verdade promete uma benevolência semelhante a todo aquele que é submisso, a saber, que pela verdadeira obediência e pelo serviço conquistará não somente o Seu amor, mas igualmente o amor do Pai Eterno e Todo -Poderoso e Senhor bondosíssimo. E diz: “Meu Pai o amará”. Ó felicidade da alma que ama Jesus! Ó felicidade do espírito submisso ao Espírito Santo! Pensa o que na vida poderias encontrar de melhor do que seres amado pelo próprio Deus? Porque, quando Deus ama alguém, ocorre uma coisa muito maravilhosa. Cuidado, no entanto, para responderes com um amor semelhante ao amor de Deus que te envolve (embora quem poderia conseguir isso?), com uma submissão muito humilde, com uma célere prontidão, com um devotado serviço e uma constante obediência. [...] Essas coisas constituem o critério para o discernimento dos espíritos divinos. Porquanto, se as precede a opressão, trata-se de um sinal apropriado da graça de Deus que deve ser concedida à alma humana, como alguém o disse: “Quase nunca estamos mais próximos de Deus do que quando nos encontramos em opressão. E Naum diz: A ninguém o Senhor deixa sem castigo. Borrasca e tempestade formam seu caminho” (Cf. Na 1,3). O Espírito vem ao ser humano com tumulto e ruído, quando a alma está abalada, atemorizada e contrita. Finalmente, vem também do céu, enviado por Cristo Senhor, daquela imortal fortaleza do triunfante Soberano Celestial. Porquanto os sopros dos espíritos maus que emanam do pântano infernal – digo-vos – chegam à alma em forma de agradáveis sussurros, agradavelmente a excitam, mas, quando se afastam, deixam milhares de remorsos de consciência, milhares de ferrões, milhares das dores mais cruéis. E, pelo contrário, é claro, o Espírito do Senhor, precedido de tormento, vem num turbilhão e com ruído;

15 mas Ele deixará vestígios em forma de alegria, milhares de consolos, milhares de frutos e milhares de bens. Se, portanto, antes do santo banquete foste oprimido, seja em razão das tuas imperfeições, seja por desejo de alcançar a graça divina, ou por qualquer outra razão, fica certo de que recebeste o Espírito Santo, que virá acompanhado de inauditos consolos. REFLEXÃO A última década da história da Igreja é o período do desnudamento de certas fraquezas que se assinalam especialmente na Igreja da área de língua alemã. No âmbito de uma consulta realizada para o Sínodo sobre a sinodalidade, convocado pelo Papa Francisco para os anos 2021-2023, foram formulados alguns postulados tanto interessantes quanto inquietantes. O cardeal de Munique e de Freising, Reinhard Marx, postula a abolição do celibato obrigatório para os padres na Igreja católica e não exclui o sacerdócio das mulheres; o cardeal Jean-Claude Hollerich, arcebispo de Luxemburgo, a exemplo de certo grupo de católicos leigos na Igreja na Alemanha, postula a mudança da doutrina da Igreja a respeito do homossexualismo, acreditando que os fundamentos sociocientíficos dessa doutrina já não são verdadeiros1. Também o presidente da Conferência do Episcopado da Alemanha, o Bispo Georg Bätzing, convoca a uma mudança da doutrina da Igreja católica a respeito da sexualidade, especialmente no que diz respeito ao homossexualismo. Segundo ele a sexualidade não é um pecado, e um homossexual praticante poder ser um bom católico. Acredita ele que, quando um casal homossexual vive em fidelidade e responsabilidade, não prejudica de forma alguma o seu relacionamento com Deus. Da mesma forma que os outros, pronuncia-se pela abolição do celibato e pela ordenação sacerdotal das mulheres2. Num comentário aos pontos de vista acima, George Weigel acredita que o caminho sinodal alemão está abandonando o Evangelho. O teólogo americano define essas aspirações como um projeto light, que significa a 1 Cf. https://www.fronda.pl/a/kard-marx-chce-zniesienia-obowiazkowego-celibatu-lepiej- aby-byli-zonaci,173170.html; https://www.fronda.pl/a/z-niemiec-homoherezja-wylewa-sie-na- caly-kosciol-kard-hollerich-kosciol-musi-zmienic-nauczanie-nt-Ibidehomoseksualizmu, 173204.html. 2 Cf. https://pch24.pl/bp-georg-batzing-chce-zmian-cel-blogoslawienie-homozwiazkow-i- kaplanstwo-kobiet/.

16 tentativa de criar uma Igreja afastada da Bíblia Sagrada e da Tradição. Trata-se de um catolicismo que não tem condições de afirmar o que acredita e como acredita. Trata-se de uma Igreja “sem fronteiras”, que não é capaz de definir aqueles ideais e aquelas ações que rompem a plena comunhão com o Corpo Místico de Cristo. Mas será que o projeto desse catolicismo light levará ao surgimento de um catolicismo vivo, capaz de dar conta das tarefas que o Papa João XXIII e o Concilio Vaticano II apresentaram à Igreja: a conversão e a santificação do mundo? Weigel observa igualmente que é vivo aquele catolicismo que aceita a sinfonia da verdade católica como resposta à aspiração do mundo por uma verdadeira libertação humana e uma autêntica comunidade humana. O catolicismo light, ou o catolicismo fluido, que extrai a sua essência do mundo contemporâneo, é um catolicismo que morre. Na opinião de Weigel, esse catolicismo é especialmente visível no caminho sinodal alemão. O autor escreve de duas apostasias presentes nesse caminho. A primeira delas é a afirmação de que a história julga a Revelação; não há pontos firmes de referência à autoconsciência católica; somos nós que governamos, não Cristo Senhor. Como exemplo fornece: “Jesus Cristo diz que o matrimônio é para sempre; o caminho sinodal pode mudar isso. São Paulo e toda a tradição bíblica ensinam que a convivência das pessoas do mesmo sexo infringe o plano divino do amor humano inscrito na nossa criação como homem e mulher; o caminho sinodal pode mudar isso, visto que nós, os pós-modernistas, é que sabemos melhor3. E a segunda apostasia consiste em apresentar a liberdade como autonomia. No entanto a liberdade como livre-arbítrio é uma escravidão provocada por si mesmo. A autêntica liberdade é a libertação, através da verdade, em direção ao bem e à beleza. O catolicismo fluido reina nas reflexões do caminho sinodal alemão. O resultado disso não será a renovação evangélica, mas a continuação do abandono do Evangelho”4. Isso lembra claramente a época da crise da Igreja na passagem do século XV para o XVI, quando se manifestaram as correntes humanísticas que se caracterizavam por uma mudança na mentalidade e nos costumes sociais, que não colocavam no centro Cristo, mas o homem novo, que substituía o amor a Deus pelo amor a si mesmo e o amor sobrenatural pelo amor aos bens terrenos (dos prazeres, das honras, das riquezas). Essas correntes desempenhavam um papel cada vez maior na corte pontif ícia, e os novos 3 cf. https://www.fronda.pl/a/george-weigel-niemiecka-droga-synodalna-porzuca-ewangelie,173842.html. 4 Ibidem.

17 costumes e a nova forma de vida tinham uma grande influência na percepção que os fiéis tinham de Roma. Observação importante: o mencionado humanismo tinha também uma outra face, uma face católica, o que não se relacionava necessariamente com a abolição da forma de compreender o mundo então em voga e com o questionamento da civilização cristão. Essa corrente humanística, com um certo estilo de piedade com ela relacionada, influenciou a arte, a pintura renascentista, a escultura e a arquitetura. Não se percebe nela o rompimento com a imagem teocêntrica do mundo e o total desaparecimento da piedade. Rafael, Michelangelo, Perugino ou Botticelli, seguindo o caminho dos teólogos, apresentam em suas obras a realidade santificada, repassada da presença de Deus. Eles se esforçam por não deixar de lado a obra da criação do mundo por Deus, o significado da Igreja, do céu, do julgamento, da adoração de Cristo, ou a ênfase da autoridade de Pedro. Os autores daquele período (séculos XV-XVI) apresentam a Sabedoria Divina em ação, o santuário vivo edificado de pedras vivas, escolhidas por Deus. Falam do poder pontif ício das chaves, do poder de ligar e de desligar tanto no mundo temporal como no eterno. Era Deus, não o homem, que permanecia no centro da atenção dos mestres renascentistas. “O homem concentrado em

18 si mesmo, sem referência ao Criador, fechado na temporalidade, concentrado na sua grandeza e no seu poder não era o centro das suas atenções”5. Sirva de exemplo dessa abordagem a Disputa sobre o Santíssimo Sacramento de Rafael. Essa obra surge nos anos 1508-1509. Ao afresco é atribuído um tríplice significado. A parte superior da pintura apresenta analogicamente a Igreja triunfante, e a inferior é uma alegoria da Igreja militante. Os santos apresentados representam os mais importantes livros do Antigo e do Novo Testamento. O terceiro céu deve representar a visão intelectual de Deus. A Disputa, portanto, é uma representação simbólica de toda a realidade sob o governo de Deus. O primeiro céu consiste no conhecimento de si mesmo; o segundo, no perfeito conhecimento da criação e o terceiro, na visão de Deus – contemplatio Dei. Petrus Galatinus assim sintetiza os empenhos dos teólogos da época que em grau significativo inspiraram os autores a eles contemporâneos: “Portanto, quem quiser aprofundar os mistérios de Deus (Dei arcana inspicere) na contemplação das coisas divinas, abandonando as coisas corporais deve elevar-se espiritualmente ao céu da Escritura – da mesma forma que Paulo arrebatado ao terceiro céu – e apresentar-se diante da porta aberta da própria Escritura – a fim de ver as palavras misteriosas, demasiadamente sublimes para que o homem as possa pronunciar”6. Percebe-se claramente que a Bíblia é a fonte da compreensão e da interpretação do mundo, da realidade que envolve o ser humano. O ponto de referência é o céu compreendido como o lugar da presença de Deus. A Igreja é a esposa de Deus. O Papa deve conduzir os fiéis à vida eterna, a Deus. Roma é a simbólica nova Jerusalém, é a cidade santa, o centro do mundo, onde se sobe ao céu, onde se experimenta a convivência comDeus. O Papa Sisto IV desejava que a capela principal do seu palácio fosse uma representação do Santuário de Salomão em Jerusalém. Os artistas pintores deviam provocar a adoração, encaminhar a atenção dos fiéis ao que é eterno e imutável. A ascese devia conduzir à contemplação e ao cumprimento da vontade de Deus. Isso não tinha nada em comum exclusivamente com a estética. Os teólogos, os papas e os artistas buscavam o ideal de apresentar um programa teológico muito preciso; era dessa forma que eles compreendiam a sua missão e procuravam mobilizar a ela os melhores mestres e utilizar-se dos melhores meios de expressão7. 5 Paweł Lisicki, Luter. Ciemna strona rewolucji, Warszawa 2017, p. 65. 6 Ibidem, p. 66. 7 Cf. ibidem.

19 É nessa realidade que aparece a figura de Estanislau Papczyński. Ele foi um filho da sua época, condicionada não somente pela situação da Polônia do século XVII, mas também pelas reformas introduzidas pelo Concílio de Trento, que eram uma resposta à reforma de Martinho Lutero. Esse Concílio via a vida religiosa como um estado de busca da perfeição, o que era confirmado por definições universalmente utilizadas como via perfectionis ou via spiritualis. A Inspectio cordis, um opúsculo escrito pelo Padre Estanislau, uma coleção de meditações e conferências, tinha por objetivo introduzir o ouvinte ou o leitor nas realidades eternas e imutáveis, que assumem um formato concreto na busca da perfeição evangélica. Segundo ele, a perfeição evangélica deve basear-se na Bíblia, especialmente no Evangelho, que foi aceito e posto em prática pelos apóstolos de Cristo8. Diz claramente que a via perfectionis ou spiritualis é o estilo de vida próprio dos apóstolos e que “todos os confessores de Cristo são Seus filhos adotivos e coerdeiros do reino do céu. No entanto, tem um direito maior a ele os religiosos, que, tendo assumido os conselhos evangélicos, fazem a profissão segundo a regra apostólica e se esforçam por imitar fielmente a vida de Cristo Senhor”9. Segundo o nosso Fundador, a perfeição religiosa se apresenta como um processo. Na sua base se encontra a iniciativa de Deus, que estimula ao rompimento total com o pecado e à busca das orientações do Evangelho para se tornar perfeito a exemplo de Cristo. A imitação da vida de Cristo em Seu amor e em sua obediência ao Deus Pai vem acompanhada da consciência da finitude da vida terrena, que direciona ao futuro escatológico10. Cristo é, portanto, o centro da vida do religioso – da pessoa religiosa – do cristão. O essencial não é tanto a fascinação com a figura, mas antes o reflexo em si da forma de vida de Cristo. A imitação de Cristo é a obrigação fundamental de um religioso. O seu objetivo é o afastamento para o Pai, que está no céu (cf. Jo 14,1ss.). Cristo apresentava esse objetivo na Sua doutrina e no Seu procedimento. A sua vida era o cumprimento da doutrina por Ele pregada sobre o Reino do Pai. “O Pe. Papczyński percebe que a rejeição do chamado de Cristo para seguir os Seus passos esconde em si o perigo não apenas do desprezo da glória que Deus preparou para os imi8 Cf. Ks. Andrzej Pakuła, Wprowadzenie, in: Błogosławiony Stanisław Papczyński, Wejrzenie w głąb serca (Inspectio cordis – a seguir IC), Wydawnictwo Księży Marianów MIC, Warszawa 2008, p. 9. 9 Ibidem. 10 Ibidem, p. 27.

20 tadores de Cristo, mas também do desprezo do próprio Deus. Engana-se, portanto, quem julga que alcançará a salvação e a glória sem a imitação do encarnado Filho de Deus”11. O Fundador dos marianos apresenta a imitação de Cristo como supratemporal (sequela Christi) e exige o mesmo relacionamento entre o atual discípulo e o Mestre, da forma como está definido nas páginas do Novo Testamento. Pode-se neste ponto fazer a primeira síntese, a saber, de que se confirma a hipótese de que as atuais tendências a tornar fluido o catolicismo têm a sua base no afastamento do Evangelho, em prol de correntes da moda, ideologicamente matizadas, que tornariam o catolicismo mais “adequado ao tempo” – fácil e agradável, o que conduz ao aniquilamento da sua força vivificante, direcionada à eternidade. A busca da imitação de Cristo provém da inspiração do Espírito Santo. É Ele que desperta o desejo do coração (desiderium cordis) de imitar o próprio Cristo – as palavras, as ações levadas até o amor heroico que vemos na Paixão do Salvador. Essa inspiração do Espírito Santo perdura por toda a vida do religioso – Ele a desperta e sustenta. O encontro com Cristo se realiza da forma mais plena durante a Eucaristia. É então que renasce o desejo do coração e é então que sofre a purificação a intenção primitiva e o ideal de uma vida dedicada exclusivamente a Cristo. Não menos importante é aqui o esforço da pessoa – o engajamento que consiste na decisão de romper radicalmente com o pecado e de empreender o esforço de imitar a Cristo numa vida sem pecado, a fim de viver por Deus e pelas Suas causas12. O Padre Papczyński sugere que o autêntico critério de seguir os passos de Cristo é a conversão. Alude nesse ponto à imagem de Judas e do cobrador de impostos Mateus. Cada um deles seguiu na realidade o chamado de Cristo para imitar a Sua vida, mas percebe-se claramente a diferença na realização desse chamado – da vocação. O Padre Fundador expressa isso da seguinte forma: “Atenta para o fato de que o testemunho da verdadeira conversão é a real imitação de Cristo. Judas não se converteu, visto que, embora tenha seguido os passos de Jesus, acompanhou-O traiçoeiramente, seguiu-O cheio de falsidade e só pensava na sua bolsa. De outra forma, como podes imaginar, procedeu S. Mateus. Ele foi realmente um imitador de Cristo, visto que, levantando-se, seguiu os Seus passos. Do que se levantou? Do pecado. Aonde acompanhou a Cristo? À prática das virtudes. Eis que tens aqui fornecida para ti uma boa regra da imitação de Cristo: 11 Ibidem. 12 Ibidem, p. 28.

21 levantar-se e seguir os Seus passos. [...] Por isso, levanta-te e segue os Seus passos, porque, se não te levantares, nunca seguirás os Seus passos”13. O radical rompimento com o pecado é a condição básica para imitar a Cristo, que com mais força ainda ressoa no apelo do Fundador dos marianos a tomar a sua cruz e a renunciar a si mesmo (cf. Mt 16,24). Com base nessa passagem do Evangelho, o Padre Fundador contrapõe a forma de vida apresentada por Cristo à vida levada segundo as aspirações do mundo. Posturas que necessariamente devem ser rejeitadas se quisemos levar uma vida evangélica são: a improbidade, a vanglória, a inveja, o orgulho. A imitação de Cristo segundo o Padre Fundador, exige o desprezo ao mundo assim compreendido. Acredita ele que a imitação de Cristo exige a rejeição de tudo que se possua ou que se possa possuir no futuro: honras, riquezas, consideração, fama, e até os parentes e os pais. Com Cristo, é preciso caminhar com decisão e determinação. “A totalidade e a intransigência no acompanhamento de Cristo deve ser a norma essencial da imitação de Cristo na perfeição. [...] Ele não somente deseja ser imitado, mas também proporciona a força àqueles que, ligando com Ele a sua vida, procuram a Ele assemelhar-se”14. Vale a pena também enfatizar que, embora a própria renúncia ao pecado e ao mundo em si mesma já seja uma expressão do seguimento de Cristo, ela constitui somente a primeira etapa. A perfeição evangélica direciona a passos seguintes, cujo objetivo é moldar em si o verdadeiro homem, a exemplo de Cristo. Imitar o Cristo todo significa, com efeito, assemelhar-se a Ele no relacionamento com Deus Pai, com o próximo e consigo mesmo. Na prática isso significa viver numa perfeita obediência ao Pai – morrer para tudo que não seja divino, para, como Cristo, viver exclusivamente por Deus15. A seguir – é praticar o amor ao próximo, inclusive aos inimigos, cuja fonte se encontra no sacrif ício da cruz de Cristo. O discípulo de Cristo, da mesma forma que seu Mestre, deve estar inflamado do desejo de salvar todos os seres humanos – para a salvação deles não poupando a si mesmo. Finalmente, a perfeição religiosa distingue-se por um adequado relacionamento consigo mesmo, ou seja, por uma imitação de Cristo em que o discípulo molde a sua própria personalidade: através da apropriada ação e da aceitação do sofrimento, pelo que se entende a consciente acei13 IC, p. 232. 14 Cf. Ks. Andrzej Pakuła, Wprowadzenie, in: Błogosławiony Stanisław Papczyński, Wejrzenie w głąb serca Wydawnictwo Księży Marianów MIC, Warszawa 2008, p. 29; IC pp. 8-10. 15 Cf. IC, pp. 304-306, 398-401.

22 tação daquilo com que nos defrontamos de forma independente de nós mesmos. O Padre Fundador faz questão da estrita execução da regra religiosa, da prática e do desenvolvimento das virtudes, da realização dos conselhos evangélicos e do ministério da salvação e da santificação dos outros. Não hesita em convocar os seus filhos espirituais a diversas ocasiões de sofrimento, tais como: mortificações, injustiças da parte dos outros, o peso do trabalho. A imitação de Cristo, segundo o Padre Fundador, conduz ao encontro e à aceitação da cruz (cf. Mt 16,24). O verdadeiro discípulo de Cristo vai carregar a cruz serenamente, corajosamente e com valorosa obstinação, o que pode servir de antídoto para a visão de um catolicismo fluido16. Perguntas: 1. Qual é a tua autoconsciência – quem és? 2. Qual a tua consciência da criação e do mundo em que vives e ao qual és enviado? 3. Qual o teu conhecimento de Deus e a tua visão do céu? 16 Cf. Ks. Andrzej Pakuła, Wprowadzenie, in: Błogosławiony Stanisław Papczyński, Wejrzenie w głąb serca, Wydawnictwo Księży Marianów MIC, Warszawa 2008, p. 31.

23 Tomasz NOWACZEK MIC Varsóvia, Polônia Fevereiro 2023 O gene da misericórdia Sobre a guerra e a paz Palavra de Deus: Lc 12,49-53 Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! Um batismo eu devo receber, e como estou ansioso até que isto se cumpra! Pensais que eu vim trazer a paz à terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer a divisão. Pois daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra três; ficarão divididos: pai contra filho e filho contra pai; mãe contra filha e filha contra mãe; sogra contra nora e nora contra sogra. FONTES Oração pela beatificação do Servo de Deus Jānis Mendriks Senhor Jesus Cristo, que convocastes Vosso servo Jānis Mendriks à Congregação dedicada à Imaculada Conceição da Santíssima Virgem Maria, fazei, caso isso esteja de acordo com a Vossa santíssima vontade, que quanto antes possamos alegrar-nos com a sua beatificação. Que viveis e reinais pelos séculos dos séculos. Amém. Dmitrijs Artjomovs, O Servo de Deus Jānis Mendriks MIC, Verdadeiro homem e sacerdote, PROMIC, Varsóvia 2019 – Carta 2 O Padre Mendriks escreveu a segunda carta em Jaunborne no dia 13 de julho de 1950, alguns meses antes da sua prisão. Essa carta era endereçada a sua irmã Verônica e trazia como título: Felizes os que sofrem, porque serão consolados. Escreve adiante: Essas palavras do próprio Salvador podem

24 consolar todo ser humano em seu espinhoso caminho de vida. Sofrer, e sofrer com paciência, só pode o ser humano, colhendo com isso méritos diante de Deus. Ninguém pode abandonar este vale de lágrimas e passar à eternidade sem sofrimentos. O próprio Salvador é chamado pelo profeta Rei de sofredor. Sua Mãe, a VirgemMaria, traz entre outros o título de Mãe Dolorosa. Será que não vamos beber do cálice do qual beberam o Salvador e Sua Imaculada Mãe, muitos santos e outras pessoas piedosas? São João Crisóstomo fala que os sofrimentos são mais preciosos que a capacidade de operar milagres. Se fôssemos capazes de operar milagres, seríamos devedores de Deus, no entanto, quando sofremos, é Deus que de alguma forma se torna nosso devedor. As pessoas têm sofrido sempre, e assim será até o final dos tempos. Mas, mesmo quando sofres por culpa própria, também então o coração se enche de certa paz, porque sabes que Deus não te rejeitou, mas quer que te tornes uma vítima em razão dos outros. Uma coisa é clara para nós todos – todo sofrimento um dia acaba. A sabedoria divina é a tal ponto grande que encontrou uma forma de colocar cruzes em todos os caminhos da vida, e por isso nada nos resta senão ser pacientes e confiantes na proteção de Deus. É muito justo repetir com frequência: “Sacratíssimo Coração de Jesus, em Vós deposito a minha esperança”. É preciso que nasça a infalível esperança depositada no Salvador, porque então a pessoa encontrará a paz para a sua alma ferida. É uma coisa muito boa oferecer todas as nossas dificuldades da vida em intenções honrosas, especialmente por outros que sofrem, para que Deus lhes dê força e para que os sofrimentos deles produzam frutos. As pessoas nem imaginam como sofre aquele que lhe proporcionou ajuda espiritual. Que essa cruz da vida se transforme em bem, para que um dia também essa pessoa com maior sucesso ainda trabalhe em sua terra. Eu estou vivendo como de costume, naquelas mesmas condições, já há um bom tempo. Por enquanto tenho tudo que é indispensável. As minhas saudações para toda a vossa família de Vocês e os outros parentes, igualmente da casa da Smilga, da Vera e outros. J. M. Jaunborne, 13 de julho de 1950.

25 REFLEXÃO Leão Tolstoi escreve nos anos 1963-1869 uma das obras literárias mais geniais, o romance histórico intitulado Guerra e paz. O autor descreve nele três importantes acontecimentos da história da Rússia do século XIX: as guerras napoleônicas, o levante dos decabristas e a guerra da Crimeia. O escritor russo está convencido de que a história é governada pelo destino, por uma força precisamente não definida. Os executores desse destino são as massas humanas e o soberano que é capaz de organizá-las, para com sua ajuda e juntamente com elas cumprir alguma missão histórica. Tolstoi atribui esse papel ao tzar, o qual, para realizar o destino – a missão, pode recorrer até ao uso da força. No entanto, ao autor da epopeia nacional russa não é estranha a ideia da guerra justa. Baseando-se no Evangelho, Tolstoi acredita que a guerra só tem sentido quando é travada em defesa da terra e do povo. Ele condena a guerra de conquista, promovida com o objetivo de satisfazer a ambição do soberano, que não oferece nenhuma oportunidade para o sucesso e a paz duradouros. Do romance esboça-se a imagem da alma russa. Não lhe faltam o tresloucado amor, o orgulho, a ambição. Não lhe faltam também a inveja, a baixeza e a torpeza. Aliás encontramos a imagem da condição da alma russa não somente em Tolstoi. Dentre os muitos escritores e pensadores russos basta mencionar Fiodor Dostoievski, que caracteriza com perfeição a condição espiritual dos seus contemporâneos – e não somente dos russos. Encontraremos as suas incisivas análises em obras e romances como: O jogador, O idiota, Os Irmãos Karamazov, Crime e castigo. A vida na miséria, na inveja, repleta de mentira, da avassaladora indolência, da exploração, da infâmia, do sofrimento intelectual e f ísico, do crime não reparado, cuja consequência e castigo será ao mesmo tempo mais um crime. Tudo isso contribui para a composição da dor do espírito que às apalpadelas busca a misericórdia. E isso pelos séculos. Pode-se ter a impressão de que a grandeza da Rússia, usurpada ou não, é desproporcional à condição do espírito, que nem se esforça por sobressair ao cego destino, sobre o qual pretensamente ninguém tem influência. Mas o que se esconde sob o cego destino? Que força, apesar das geniais intuições espirituais, empurra o homem da Rússia à escolha das opções piores, que são fonte de sofrimento para ele mesmo e para os outros? De onde provém a impotência para a prática do bem? De onde provém a crueldade e a vontade do domínio sobre todos? Não será isso semelhante ao estado do homem descrito pelo famoso pai do deserto Evágrio do Ponto

26 como acédia – o demônio do sul? Evágrio caracteriza dessa forma a situação em que alguém como que está sujeito a um completo entorpecimento psíquico, à impotência da alma e do corpo. Trata-se da incapacidade de empreender qualquer luta por si mesmo, para salvar a grandeza da própria humanidade, que só se pode compreender e aceitar graças a um autêntico relacionamento com alguém que significativamente nos sobrepuja, e que ao mesmo tempo se encontra próximo – com o Deus pessoal. O Apóstolo São Tiago ensina: “De onde vêm as guerras? De onde vêm as brigas entre vós? Não vêm, precisamente, das paixões que estão em conflito dentro de vós? Cobiçais, mas não conseguis ter. Matais, fomentais inveja, mas não conseguis êxito. Brigais e fazeis guerra, mas não conseguis possuir. E a razão por que não possuís está em que não pedis. Pedis, sim, mas não recebeis, porque pedis mal. Pois o que pedis, só quereis esbanjá-lo nos vossos prazeres” (Tg 4,1-3). A razão da má oração pode ser a falsa imagem daquele a quem rezo. O Padre Jānis Mendriks experimentou pessoalmente esse estado desumano ao enfrentar os carrascos do regime comunista russo. O sistema do mal, estrutural imutável em sua essência, manifestou-se novamente no dia 24 de fevereiro de 2022. Na manhã daquele dia iniciou-se a bárbara guerra da Rússia com a Ucrânia. Esse, aliás, não foi o único acontecimento que trouxe às pessoas a desgraça e o inimaginável sofrimento. Basta mencionar a Chechênia, a Geórgia, a Abcásia, a Ossétia do Sul, a Síria com a completamente massacrada Aleppo, onde vidas humanas não foram poupadas. Os crimes não reparados vingam-se muitas vezes e dão origem a novas tragédias, como se fossem os homicídios do Raskolnikov do romance Crime e castigo de F. Dostoievski. Além disso, no ano passado, à luz da agressão russa contra a Ucrânia, mais uma vez se evidenciou com toda a força o fiasco da enfadada e fatigada cultura ocidental, que, ao cortar as próprias raízes firmadas em Deus, revelado na face de Jesus Cristo, começou a acreditar que criaria um novo homem, capaz de criar a si mesmo de acordo com ideias arbitrárias a respeito do sexo, das influências, da posse, do domínio sobre os outros. Surgiu daí o deslumbramento com mitos desprovidos de etos: com o mito da solidariedade, da legalidade, do diálogo, da transigência, da tolerância, da ecologia, dos direitos humanos etc. Além disso – além da promoção de teorias surrealistas, completamente afastadas da experiência cotidiana das pessoas, com a máxima boa vontade seria retirado da experiência e da linguagem humana não somente o conceito do pecado, o que em princípio se realizou, mas também o conceito do mal, para já não falarmos da negação da sua existência. Esse é apenas o esboço

27 do problema que introduziu essa grande cultura no estado da acédia – da impotência espiritual. Infelizmente, essas tentativas sempre se realizam primeiramente na dimensão individual, antes de assumirem as suas formas institucionalizadas, revestidas de um vasto aparelho de conceitos, normas, princípios e órgãos que devem manter a guarda da nova ordem burocratizada, construída fora de Deus e da Sua lei. O estado da acédia não é estranho também a nós, religiosos. Sabemos muito bem que a desistência do radicalismo do testemunho dado do Evangelho de Cristo em favor da mediocridade da vida consagrada é uma das causas do atual desparecimento da autoridade entre nós mesmos e, indiretamente – quem sabe – na sociedade amplamente compreendida. Felizmente defendem-nos desse marasmo espiritual os irmãos mártires, inclusive os mártires do tempo do comunismo. Trata-se de indivíduos capazes de se oporem ao mal, porque confiaram e entregaram a si mesmos a Deus. Eles cultivaram em si a mentalidade da misericórdia – “Jesus, eu confio em Vós”. Na abertura ao Espírito de Jesus tiveram a coragem de entregar a vida por Deus e pelas pessoas. Na mentalidade da misericórdia, com efeito, cabe o dom da coragem de anunciar o Evangelho, a confiança na onipotência e na bondade do Criador, o indestrutível testemunho da vida, maior que o sofrimento, o pecado e a morte. Essa sua forma de vida moldou a geração da misericórdia. A misericórdia pode ser comparada a uma espécie gene que definitivamente foi enxertado na geração educada na biografia de S. Faustina, de S. Maximiliano Kolbe, de S. João Paulo II e também de numerosos santos e beatos entre os quais se encontram os marianos: S. Estanislau Papczyński com a imagem da misericórdia que atinge o purgatório e que o induziu a confiar a Deus os que pereceram nos campos de batalha da Polônia da sua época; os beatos mártires de Rosica – Antônio Leszczewicz e Jorge Kaszyra, com uma imagem da misericórdia que permitiu acompanhar as pessoas até o último instante da vida delas para que pudessem com esperança e coragem olhar nos olhos da morte, conjuntamente entrar na glória de Cristo, que vinha a elas do futuro, para a ela conduzi-las; e finalmente os atuais candidatos aos altares, como o mencionado nesta reflexão Jānis Mendriks, André Čikoto, Fabiano Abrantowicz, Vladas Mažonas, Eugênio Kulesza, que com a imagem da misericórdia, em meio ao terror comunista, aos tormentos psíquicos e f ísicos, opuseram-se ao sofrimento e em meio à bestialidade deram o testemunho da dignidade do ser humano, da pessoa mergulhada na graça e na bondade de Deus. A misericórdia no martírio – ex aerumnis carceris – a lenta morte em razão dos tormentos, do esgotamento, das perseguições

28 na prisão ou no campo de concentração. Embora não tenha sido uma morte repentina pela fé, aqueles que lentamente a experimentaram estavam prontos a aceitá-la. Essa prontidão deles a aceitar o sofrimento que levava à morte era a expressão da suprema fé. A misericórdia encerra em si o horizonte do infinito, que supera o estreitamento humanista à temporalidade e abre ao céu, ao qual caminhamos por toda a vida – aonde está sentado Cristo à direita de Deus. A misericórdia, finalmente, comprova o valor da cultura em que vivemos. Ela exorciza com precisão todas as ideias que pretensamente deve servir ao ser humano, e especialmente o humanismo sem Cristo, o qual, ao tentar domesticar o mal, deixa de ser capaz de lutar com ele, mergulhando com isso na acédia que impele ao crime. O gene da misericórdia tem a sua encarnação. A Misericórdia Encarnada é Cristo. A misericórdia proporcionada são os discípulos enviados por Cristo, que possuem o Seu Santo Espírito, que no momento da provação lhes sugere o que e como devem fazer e falar. Além dos acima mencionados discípulos de Cristo, temos os atuais arautos da Divina Misericórdia – uma multidão de pessoas que abrem os seus corações, entre os quais se encontram as conscientes, simples e humildes testemunhas do divino amor misericordioso e aqueles que por décadas cresceram nas suas emanações e buscam a Deus como que às apalpadelas, muitas vezes encontrando-O nos semelhantes, e às vezes em si mesmos. Isso poderá soar como paradoxal, mas foi justamente dessa forma que Deus se preocupou com os Seus confessores, fazendo-lhes companhia no sofrimento em Aleppo, na Chechênia, em certa ocasião em Ruanda, na Ucrânia de hoje e em muitos outros lugares sombrios do nosso globo. Esses lugares e tempos dramáticos são conferências – lectio divina, nas quais Deus revela o seu nome – Misericórdia. Deus não se cansa conosco e com o nosso pecado. É Ele que nos procura, sem jamais condenar. As Suas chagas são uma prova de amor a nós pecadores – essa é a hora da morte de Jesus, o tempo de parar, para exclamar: “Jesus, eu confio em Vós, [...] pela Sua dolorosa paixão tende misericórdia de mim e do mundo inteiro!”. Desde o tempo da Santa Irmã Faustina, a humanidade percorre conscientemente os caminhos da misericórdia. Como marianos, temos nisso a nossa pequena participação. Sabemos que o Pe. José Jarzębowski percorreu com o Diário da Irmã Faustina um grande pedaço do mundo para no final tornar acessível esse livro espiritual às pessoas. A experiência espiritual da Santa Irmã Faustina é o seu relato pessoal sobre a Misericórdia de Deus, que lê a nossa vida. Nos dramáticos acontecimentos em nós e em volta de nós lemos o livro da Divina Misericórdia, para inesperadamente nos en-

29 contrarmos no centro do mundo. Porque onde está Deus Misericordioso e nós com Ele, ali sempre está o centro do mundo, lugar da formação espiritual, onde Deus nos faz afastar-nos do confortável egoísmo e ensina a amar como Ele mesmo ama. Dessa forma percebemos que a essência do Evangelho é a boa nova sobre a inconcebível Divina Misericórdia. A misericórdia é o mais importante atributo de Deus – é o puro Evangelho. E, se assim é, nada mais nos resta senão assumir o desafio do testemunho da fé de que Deus é maior que o entorpecimento espiritual, mais forte que o demônio do sul e que proporciona a graça de ativamente reconhecermos o tempo e o lugar da Sua visitação, envolvendo-nos nela pelo ativo amor. O amor ativo é um radical sinal profético, é o enraizamento da boa ação no misericordioso amor de Deus. Esse enraizamento remonta à consagração batismal, que é no fundo o início da única formação que a Igreja conhece: ser chamado à christiformitas – a ser moldado a exemplo de Cristo – a levar a vida que Ele levou. É o nosso caminho – o testemunho da vida do homem novo, moldado pelo Espírito de Cristo, que é o Servo de Javé e o Cordeiro que oferece a Sua vida; que foi morto, mas que continua vivo. É o nosso carisma e a nossa missão ao mesmo tempo, radical pelo ingresso em tudo aquilo que é a Igreja, inclusive nas situações dramáticas acima descritas, nas quais Deus revela a misericórdia. Essas situações mostram muito bem o que é o radicalismo evangélico – a aceitação da forma de vida do Filho de Deus, que deseja cumprir exclusivamente a vontade do Pai, a aceitação dos laços que apresentam a união de Cristo com a Igreja (os conselhos evangélicos, os votos) e finalmente o ingresso na realidade da escatológica Nova Jerusalém – a demonstração de que os bens celestiais já se encontram presentes o mundo, apesar da sua imperfeição e do inimaginável sofrimento1. Com o radicalismo relaciona-se o profetismo – o ser profeta. A profecia é aquilo que distingue a vida das pessoas consagradas. Elas participam, como todos os cristãos, da missão sacerdotal, real e profética de Cristo, mas a sua peculiar tarefa profética é o despertar do mundo. Trata-se de alguém que no simples dia a dia é capaz de perceber a ação de Deus, que percebe o presente e o passado e que é capaz de apresentar o sentido de tudo isso. “Na Igreja, os religiosos são chamados de maneira especial a serem profetas que testemunham como nesta terra Cristo viveu e que anunciam como será o reino de Deus em sua perfeição. O religioso nunca pode desistir de profe1 Cf. Lumen Gentium (LG) 44; Vita consecrata 6.

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