Ad Honorem Immaculatae Conceptionis Mariae

Ad honorem Immaculatae Conceptionis Mariae Via paschalis marianorum Através da morte à vida da Congregação dos Padres Marianos

1 AD HONOREM IMMACULATAE CONCEPTIONIS MARIAE Via paschalis marianorum Através da morte à vida da Congregação dos Padres Marianos

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3 AD HONOREM IMMACULATAE CONCEPTIONIS MARIAE Via paschalis marianorum Através da morte à vida da Congregação dos Padres Marianos Redação: Kazimierz Pek MIC Wojciech Skóra MIC Cúria Geral da Congregação dos Padres Marianos Roma 2021 Varsóvia 2021 PROM I C

4 Tradução do polonês Mariano Kawka Projeto da capa: Hanna Woźnica-Gierlasińska Ilustração na I página da capa Um crucifixo do final do século 17 no Santuário de S. Estanislau Papczyński em Góra Kalwaria, Marianki, IV página da capa Logomarca do jubileu dos 350 da Congregação dos Padres Marianos Composição editorial: Vieira Jovanete Paulo MIC Composição gráfica e redação técnica Eliza Wiśniewska Para uso interno

5 SUMÁRIO Pe. Andrzej Pakuła MIC Palavra introdutória . 7 Wojciech Skóra MIC Janeiro 2022: A vida do Padre Fundador – salvo da morte. . . . . . 11 Wojciech Skóra MIC Fevereiro 2022: A vocação do Fundador – as dores do parto no Espírito Santo. 21 Jacek Rygielski MIC Março 2022: Padre Casimiro Wyszyński: a páscoa da fé – detido no caminho da sua piedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 Tomasz Nowaczek MIC Abril 2022: A páscoa portuguesa . . . . . . . . . . . . . . . 34 Tomasz Nowaczek MIC Maio 2022: Padre Vicente Sękowski – caminho de fé com o Cristo Pascal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 Tomasz Nowaczek MIC Junho 2022: A missão do renovador – rumo à visão divina . . . . 50 Kazimierz Pek MIC Julho 2022: A vida do beato Jorge Matulewicz: o poder de Deus na experiência do sofrimento . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Krzysztof Ziaja MIC Agosto 2022: Harbin – as marcas dos marianos na Ásia (1928-1948). Da fé, através da morte, com a esperança de abençoados frutos no futuro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 Jan Sergiusz Gajek MIC Setembro 2022: O Padre Cristóvão Maria Szwernicki e o seu caminho pascal. 79

6 Aliaksandr Shamrytski MIC Outubro 2022: Os mártires de Rosica – amadurecimento para a união com o Bom Pastor. . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 Maciej Zachara MIC Novembro 2022: Os Mártires do regime comunista – por amor a Cristo e à Igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 Paweł Naumowicz MIC Dezembro 2022: O kairós da beatificação e da canonização – a páscoa da Congregação rumo à identidade carismática. . . . . 97

7 Palavra introdutória Via paschalis marianorum, com o subtítulo Através da morte à vida da Congregação dos Padres Marianos, é mais um livro publicado dentro da série jubilar Ad honorem Immaculatae Conceptionis Mariae. As duas publicações anteriores continham uma reflexão teológico-histórica sobre questões relevantes relacionadas com a Congregação dos Padres Marianos e abordavam assuntos como o carisma fundador de Santo Estanislau de Maria Papczyński, os elementos essenciais do carisma da comunidade por ele fundada, o ato da Oblatio do nosso Pai Santo Estanislau como acontecimento que deu origem à fundação, à fórmula de consagração da Oblatio etc. Os textos das reflexões contidos na presente publicação apresentam, por sua vez, uma reflexão de um outro ponto de vista. Constituem uma tentativa de extrair dos 350 anos de história da Congregação dos Padres Marianos alguns eventos de caráter pascal. Evidentemente, a escolha dos temas aqui apresentados não esgota a riqueza da história da comunidade religiosa fundada pelo nosso Pai Santo Estanislau e não exclui outros acontecimentos de caráter pascal. Por um lado, trata-se antes de uma expressão da autolimitação dos redatores (a seleção dos 12 temas se relaciona com o caráter da reflexão – trata-se de conferências para 12 dias de recolhimento, para cada mês do ano 2022) e, por outro lado, constitui uma apresentação das situações mais significativas e, em princípio, de todos conhecidas. Aqui elas apenas foram submetidas a uma interpretação pascal. No propósito dos redatores, a escolha da chave pascal de interpretação dos acontecimentos da história da Congregação dos Padres Marianos relaciona-se com a necessidade de uma cristianização da história e com o desejo de a enxergar à luz da fé. Na opinião deles, esses mesmos acontecimentos poderiam, naturalmente, ser definidos com o termo „crise”, e tal abordagem também seria correta. É assim que hoje geralmente se fala, inclusive na linguagem eclesiástica. No entanto „Páscoa” é um termo não apenas mais adequado, mas que também melhor expressa a experiência de fé tanto de pessoas particulares, às quais foram

8 dedicados os textos, como também da própria comunidade dos Padres Marianos. As questões abordadas no presente livro apresentam a história da salvação, tanto a individual como a comunitária, isto é, da Congregação dos Marianos e – no sentido mais amplo – igualmente a história da Igreja. A adoção do paradigma pascal situa imediatamente os fatos como lugar da presença e da ação de Deus. Abordando a questão numa grande síntese, a palavra „crise”, que hoje tem muitos significados, inclusive o filosófico, religioso, econômico etc., de maneira geral expressa a situação concreta do objeto descrito, apontando para indícios de uma ruptura temporária do estado até então existente. No entanto, não se relaciona diretamente nem com a causa desse estado nem com o seu objetivo, mas exige uma análise separada da situação. A palavra „Páscoa”, por sua vez, introduz imediatamente o contexto religioso: primeiramente em relação à Páscoa do Antigo Testamento, onde de maneira geral significa uma „passagem” e envolve os acontecimentos relacionados com a saída do Egito (cf. Ex 12,12-14.27), e a seguir no contexto do cristianismo, no qual o lugar central é ocupado pela obra salvífica de Jesus Cristo (mistério pascal) e pela Sua „passagem” da morte à vida através da ressurreição. A abordagem pascal das biografias de pessoas e acontecimentos selecionados da Congregação dos Padres Marianos, tendo como subtítulo Através da morte à vida..., extrapola uma apresentação puramente histórica dos fatos. Na realidade, torna-se para o leitor a proclamação de um querigma: de que Deus tem condições de extrair a vida da morte, da maneira como isso se realizou na Pessoa de Jesus; de que a morte não tem a última palavra na história pessoal e coletiva da salvação; de que a experiência do Cristo pascal, graças à fé e à união com Ele no Espírito Santo, pode ser uma experiência do ser humano em todo tempo e em todo lugar. As histórias das diversas pessoas, membros da Congregação dos Marianos, apresentadas no presente livro são uma prova disso. Além disso, constituem igualmente uma expressão de luta espiritual através da fé pascal. Para uns isso será a esperança de que o esforço do seu ministério sacerdotal nos confins da Sibéria produzirá um futo conhecido apenas a Deus e às pessoas às quais proporcionaram ajuda (C. Szwernicki), ou de que a sua fé produzirá o fruto no tempo apropria-

9 do, a eles desconhecido (E. Papczyński, C. Wyszyński, J. Matulewicz); para outros isso vai significar a “esperar contra toda esperança” de que Deus não permitirá a morte da Sua obra (V. Sękowski), e outros ainda, unidos com a morte de Cristo, passarão pela sua morte para n’Ele e com Ele ressuscitar (a missão de Harbin, a Páscoa portuguesa, os mártires do regime comunista e os mártires de Rosica). Recomendando o presente livro, agradeço cordialmente aos redatores pela abordagem original das questões, e aos autores pelo esforço despendido nas pesquisas empreeendidas. Sem dúvida servirá ele para ampliar os horizontes do conhecimento dos leitores – confio que também dos horizontes da fé. Andrzej Pakuła MIC Superior Geral Roma, 5 de novembro de 2021, Memória de todos os falecidos da Congregação dos Padres Marianos

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11 Wojciech Skóra MIC Sulejówek, Polônia Janeiro 2022 A vida do Padre Fundador – salvo da morte Bíblia: Salmo 40,2-10: Esperei firmemente no Senhor e ele se inclinou para mim, atendendo à minha súplica. Tirou-me da fossa da morte, do barro do pântano, colocou meus pés sobre a rocha, deu segurança a meus passos. Fez-me cantar um canto novo, um louvor ao nosso Deus. Muitos vão ver e temer, e confiarão no Senhor. Feliz o homem que põe no Senhor sua esperança e não se volta para os soberbos, nem para os que seguem a mentira. Quantos prodígios fizeste, Senhor, meu Deus, quantos projetos em nosso favor! Ninguém a ti se compara. Se eu os quisesse anunciar e proclamar, demasiados são para serem contados. Não quiseste sacrif ício nem oferta, mas abriste meus ouvidos. Não pediste holocausto nem vítima pela culpa. Então eu disse: “Eis que venho. No rolo do livro está escrito a meu respeito que eu cumpra tua vontade. Meu Deus, é isto que desejo, tua lei está no fundo do meu coração”. Anunciei com alegria a tua justiça na grande assembleia; vê, não conservei fechada a minha boca, Senhor, tu o sabes.

12 Fontes: Vita Fundatoris 16-17: Assim, pois, com um conterrâneo e com o mencionado parente, durante uma chuva torrencial chegaram com segurança àquela cidade de Lvov, distante quase cem milhas da terra natal. Lvov era considerada como a alimentadora de eminentes sábios e era famosa como singular amiga da misericórdia. Mas, visto que o Deus todo-poderoso e que tudo prevê para o futuro deliberou aperfeiçoar Estanislau e prová-lo em todos os seus caminhos, decidiu provar ali o Seu escolhido como o ouro no fogo. Permitiu que o prefeito não admitisse os rapazes que se candidatavam à escola porque não tinham nenhuma recomendação, e também porque, embora não lhes faltasse um grande entusiasmo para o estudo, eles ainda não sabiam muita coisa. E dessa forma, após deixar o torrão natal e experimentar muitos incômodos na viagem, não atingiram ali o seu objetivo, isto é, a dedicação a subsequentes estudos. Não tendo entre os estranhos ninguém conhecido, vagueando para cá e para lá, esgotaram o dinheiro recebido dos pais. O parente, seu primo, permaneceu pouco tempo em Lvov, visto que foi aceito para dar aulas aos filhos de um bacharel numa vila próxima. E Estanislau permaneceu na casa de certo burguês, igualmente com o objetivo de dar aulas aos meninos. Pelo que, embora não tivesse sido aceito no colégio por falta de ciência, no entanto, por previsão e disposição do misericordiosíssimo Deus foi aceito por dois burgueses de Lvov, para ensinar a leitura a seus dois filhos. Na casa de um deles tinha suficiente alimentação, e na casa do outro, um quarto com uma confortável cama. Passarei agora à sua cruz, a respeito da qual falei um pouco antes. Quando, pois, Estanislau, sendo ele mesmo ainda um menino, com muita diligência dedicava-se aos alunos a ele confiados e da forma adequada ensinava-lhes as coisas fundamentais para a idade juvenil e, distinguindo-se pelo exemplo, pela modéstia e outras virtudes, foi por esses burgueses e pelos vizinhos cordialmente aceito, Deus permitiu que ele fosse acometido primeiramente por uma febre muito alta, que durou quase quinze semanas e, quando cedeu, ou antes, quando foi superada graças à solicitude da mãe de família e aos remédios utilizados,

13 todo o seu corpo foi coberto por uma escabiose tão terrível que, por despertar a aversão, foi-lhe negada a residência. Assim, pois, mal se mantendo vivo, perambulando pelas ruas da cidade e pelas aldeias, pedindo que alguém lhe estendesse a mão prestativa, por caridade foi aceito num abrigo. No entanto, depois de uma ou duas semanas, quando a escabiose ampliou-se mais ainda, foi expulso também desse abrigo. Veio um inverno muito rigoroso, a neve e o frio intenso, e ele dia e noite permanecia fora de casa, no desabrigo e no frio. Assim gravemente doente e enfraquecido, abandonado por todos, não tinha nenhum apoio nem ajuda além de Deus. Quando sofria esses tormentos, somente a Deus podia pedir socorro, tendo somente os lábios livres da doença, erguendo o olhar ao céu e com gemidos suspirando por um socorro que viesse de lá. E, para que não definhasse inteiramente, Deus misericordioso lhe prestou ajuda. Deu-lhe um desconhecido companheiro, que costumava todos os dias levá-lo consigo para fora dos limites da cidade, para que passasse a noite num monte de feno. Eles iam até lá de propósito às escondidas, quando descia a escuridão, temendo que o proprietário os privasse também desse mísero abrigo. Para não morrer de fome, juntamente com o companheiro que lhe fora dado por Deus andava de porta em porta e, cantando, mendigava uma esmola. Espantoso é o que agora vou relatar. Bem na véspera do Natal a doença intensificou-se mais ainda. Por isso Estanislau nem pôde ir à igreja para ouvir a santa Missa, mas quase durante toda a oitava permaneceu deitado naquele feno. O único consolo lhe era proporcionado pela lembrança do seu Salvador, que, tendo vindo para a nossa redenção, descansou sobre o feno, não numa estalagem. Quando em razão da fraqueza não podia mexer-se do lugar um passo sequer, uma modesta porção de comida lhe era fornecida pelo desconhecido companheiro, que o Deus bondosíssimo lhe havia dado então como provedor e pai. Após as festas do Natal, quando se sentiu mais forte, dirigiu-se à cidade. Certo dia, altas horas da noite, voltando ao seu lugar de abrigo, ou seja, ao feno, estava tão enfraquecido que não pôde seguir adiante. Entrou furtivamente em certa casa, pertencente a um burguês muito piedoso, a um carpinteiro chamado Snopek, e, bem escondido num canto

14 da casa, passou ali aquela noite. De manhã cedo foi visto pela mãe da família e por uma empregada, mas Deus inflamou os corações delas de piedade, de maneira que, movidas pela caridade, elas permitiram que ali descansasse. Enquanto isso, inesperadamente a doença atacou as suas pernas, que se cobriram inteiramente de feridas, para as quais não havia nenhum remédio. Além disso, dia a dia a doença se intensificava de tal forma que ele parecia estar apodrecendo vivo. Já por essa razão poderia ser expulso do seu abrigo para não contaminar os outros. Deus, no entanto, infundiu nos corações dos moradores da casa tal força de amor e misericórdia que eles não sentiam repugnância a ele, mas antes, com compaixão e choro, compadeciam-se dele e lamentavam a sua sorte. E assim o Deus bondosíssimo e misericordioso, ainda na juventude o instruiu e preparou na paciência e no sofrimento para ser o futuro fundador de um Instituto religioso que devia proporcionar ajuda aos que sofrem no purgatório. Deus quis que o próprio Estanislau, primeiramente em tudo provado, exercitado e sofrido, aprendesse a participar da dor e a compadecer-se das almas em seus pesados tormentos e a ter um amor maior ainda a elas, visto que ele mesmo sofreu e experimentou a compaixão, o que se mostrará adiante. Reflexão O caminho de vida de S. Estanislau de Jesus e Maria Papczyński é assinalado por variadas formas de sofrimento. Essa dimensão indubitavelmente passional da sua peregrinação terrena – graças à sua abertura ao amor de Deus – assume um formato pascal, de passagem para uma nova vida. Olhemos para essa experiência através da leitura dos textos do próprio Pe. Papczyński e dos acontecimentos descritos pelos seus biógrafos. A experiência do mal parece negar drasticamente a bondade e o amor de Deus. O noviço escolápio Estanislau Papczyński defronta-se com a problemática do mal moral e f ísico já nos mais antigos registros preservados, nos chamados Secreta conscientiae (Segredos de consciência). Após a conclusão dos estudos filosóficos ele escolhe o ca-

15 minho da vocação religiosa e faz um retrospecto da vida já passada, assinalada por dificuldades, pelo sofrimento e pelo pecado. À luz da fé descobre o sentido das suas experiências e envolve no manto da oração os frutos da reflexão feita: “Sede pelos séculos bendito, Senhor, e fazei que após tantas más ações eu pratique as boas na minha vocação, quando realmente descubro que por mim mesmo não sou capaz de nenhum bem. E tu, que isto lês, não te espantes que isso tenha sido por mim apresentado, porquanto eu acreditava que é coisa abjeta ocultar os benef ícios divinos, e a ti eu queria estimular a glorificar a onipotência de Deus e a Sua solicitude por nós. Ao qual seja dada glória, honra, adoração pelos séculos. Amém.” (SC, pp. 1407-08). O autor descobre que ao pecador faz companhia o Deus bondoso e todo-poderoso, mas, se ele consegue praticar qualquer bem, definitivamente isso deve ser atribuído somente a Deus. Essa visão um tanto pessimista da condição humana, com a qual se identifica o noviço Estanislau, pode resultar de duas razões: ele faz um consciente esforço para humilhar a si mesmo e para prestar contas da vida leiga passada, ou então, à luz do Espírito Santo, recebe a capacidade de penetrar nas motivações das suas decisões e dos seus atos, pelo que descobre a sua insignificância e imperfeição. Ao escrever da impotência subjetivamente sentida de praticar qualquer bem no contexto dos efeitos objetivamente abençoados das suas ações (conclusão dos estudos, descoberta da vocação religiosa, preservação da viva fé), o jovem Estanislau Papczyński pode atribuí-los unicamente ao próprio Deus. Portanto a pecaminosidade resultante da natureza enfraquecida, e não de decisões visadas, não constitui para Deus um obstáculo para se utilizar do ser humano para a sua salvação e a salvação dos outros. Um outro tipo de mal com o qual luta S. Estanislau são os insucessos da vida e a experiência da humilhação dali resultante: “Agradeço, portanto, a Deus porque foi por vontade Sua que eu era então obrigado por meus pais a apascentar o rebanho, visto que (ouso declarar isso com a consciência tranquila), permanecendo nas pastagens, em meio ao rebanho, eu preservei a consciência pura e santa! Meu Senhor! O que humildemente Vos suplico é que esse tipo de Providência da Vossa Majestade – que espero para o futuro e no que acredito – me conduza até o final da minha vida, para que Vós sejais glorificado em

16 todas as minhas ações, nos meus pensamentos e nas minhas palavras” (SC, p. 1408). Um segundo abandono da escola por Papczyński em razão de um “singular desânimo” resultou na decisão do pai de destiná-lo a cuidar do rebanho de ovelhas. Os bons resultados até então alcançados nos estudos e o início da escola média, para o próprio estudante e para os pais, eram motivo de orgulho, despertando, além disso, o respeito e o reconhecimento das pessoas próximas. A volta para casa contrariamente à vontade dos pais podia ter provocado a justa decepção deles e a decisão, antes maldosa, e não orientada pedagogicamente, a respeito do futuro do filho. Da perspectiva dos doze anos passados desde esse acontecimento, ele reconhece a própria decisão e os seus efeitos como uma abençoada experiência da Providência Divina. Ainda que humilhado diante das pessoas próximas, ele mesmo vivenciando o caos e a inquietação interior, no final experimenta um profundo consolo da alma, e o fruto mais importante, a consciência pura e santa. Papczyński reconhece como o bem máximo a preservação do pecado, ou seja, a manutenção de um vivo relacionamento com Deus, que leva a pessoa a atingir a perfeição, utilizando-se, no entanto, de meios que à primeira vista podem ser reconhecidos como penosos e dolorosos. De ambos os textos reflete-se a luz pascal e o fruto da verdadeira metanoia. A experiência das fraquezas pessoais e dos acontecimentos desagradáveis dá origem ao testemunho do mal superado pelo poder de Deus. Embora não haja nesses textos uma alusão à Páscoa de Cristo, percebemos os seus frutos. O caminho pascal de fé de S. Estanislau Papczyński desvenda-se no descobrimento da sua vocação de vida. Um jovem educado, com a perspectiva de uma carreira de funcionário, talvez num solar da nobreza, ou até na corte real, escolhe o caminho da vocação religiosa. A sua decisão, certamente dif ícil de aceitar pela sua família, torna-se compreensível unicamente na perspectiva de um dom do Espírito Santo, isto é, na perspectiva da graça. A respeito da sua vocação religiosa ele escreverá em 1675: “Muitos sabem que eu me encontrava na Congregação para mim mais cara que a vida das Escolas Pias, naquela caríssima Companhia dos Pobres da Mãe de Deus. Torna-se muito dif ícil de explicar quanto eu apreciava a minha vocação, somente por Deus em mim acesa (a Deo provectam)”. Ele a considera como a passagem deste

17 mundo para a dimensão da vida divina, como a escolha daquilo que ele mesmo chama paraíso terrestre e porto de salvação. Nas reflexões pronunciadas em Góra Kalwaria aos escolápios enfatiza que toda vocação ao estado religioso é despertada pelo Espírito Santo: “E tu, foi graças ao Espírito Santo que recebeste tão grande dom e luz!” Essa constatação é o ponto de partida para a interpretação escatológica da vocação religiosa como o porto ao qual se chega do mui perigoso mar do mundo e se evitam grandes borrascas e tempestades dif íceis de superar (cf. IC, p. 983). A esse porto-ancoradouro o cristão é conduzido pelo Espírito Santo: “Tu também abandonaste o torrão natal pelo ancoradouro que pela vocação religiosa te apontou o dedo do Espírito Santo”. Os mencionados Secreta conscientiae, reconhecidos hoje como perdidos, continham também relatos de numerosas e milagrosas intervenções divinas na vida de Estanislau Papczyński. Encontramos uma síntese deles em Vita Fundatoris, escrita pelo Pe. Casimiro Wyszyński com base na leitura das notas do Fundador, bem como nos relatos de numerosas testemunhas da sua vida ou daqueles que com elas tiveram contato. Dessa descrição ficamos sabendo, por exemplo, da extraordinária intervenção de Deus quando foi salvo como criança ainda não nascida. Durante uma travessia pelo rio Dunajec de sua mãe Sofia, que estava voltando da feira em Sącz, a eclosão de uma repentina tempestade provocou o acúmulo das ondas no rio, o que era uma ameaça real à vida de ambos. Sofia conseguiu somente pedir o socorro do Céu, e o barco, de forma inexplicável, imediatamente se encontrou na margem. Quando jovem, com o objetivo de continuar os estudos viaja a Lvov. Não aceito no ginásio dos jesuítas, trabalha como professor de filhos de burgueses da cidade. No outono de 1636 contrai uma grave doença, o que o força a deixar a casa dos seus empregadores. Enfraquecido por um alta febre, sem teto para se abrigar, sem meios de vida e distante da família, permaneceu por longas semanas em enorme abandono. Nesse estado de real ameaça de morte aparece um homem desconhecido, que envolve o jovem de desinteressada proteção. Estanislau vai interpretar essa experiência pelo prisma do relato bíblico sobre a companhia do arcanjo Rafael ao jovem Tobias. Muitos anos mais tarde, no Cenáculo de Góra Kalwaria, ergueu a ele um altar junto ao qual, rezando ou celebrando a Eucaristia, alcançou para muitos a graça da cura, e até da volta à vida.

18 A cruz de Lvov tornou-se uma etapa extremamente importante na moldagem da personalidade, da fé e da vocação mariana de Estanislau Papczyński. Escreve Casimiro Wyszyński: “Assim o Deus bondosíssimo e misericordioso, ainda na juventude o instruiu e preparou na paciência e no sofrimento para ser o futuro fundador de um Instituto religioso que devia proporcionar ajuda aos que sofrem no purgatório. Pela paciência e pela dor preparou o futuro instituidor dessa ajuda, para que, ele mesmo sendo submetido aos sofrimentos e à provação, aprendesse a compadecer-se das almas em seus extremamente pesados tormentos” (VF 17). Pelo fulcro histórico-salvífico S. Estanislau interpreta umoutro acontecimento da sua juventude, ao redigir o seu Segundo testamento (1699). Tudo aconteceu em Varsóvia em 1655 ou 1656, no início da vocação escolápia. Recorda ele: “Afasto-me desta vida terrena na fé romanocatólica, pela qual estive pronto a derramar o sangue durante a guerra com a Suécia, quando contra mim, que vinha da Cidade Velha com um companheiro, nas proximidades [da igreja] dos dominicanos, avançou, sacando a espada, um soldado herege. Enquanto o meu companheiro fugia (embora fosse alemão), eu, tendo-me ajoelhado, apresentei o pescoço para o corte, mas por disposição da divina providência ocorreu que não sofri nenhum ferimento, embora tivesse sido por três vezes atingido com muita força; no entanto, por quase uma hora e meia senti uma profunda dor” (Testamento segundo, p. 1494). A salvação da vida após alguns golpes tão violentos permanece no coração do Pe. Papczyński como uma das mais visíveis experiências da proteção divina. A exatidão da descrição – feita quase meio século após o próprio acontecimento – lembra os testemunhos bíblicos de pessoas atingidas pelo poder do amor de Deus, que preservam na memória os mínimos detalhes, como p. ex. a vocação de João apóstolo (cf. Jo 1,27-34) ou o encontro de Saulo com o Ressuscitado na entrada de Damasco (At 16). O juvenil e imprudente zelo do noviço com o tempo seria exposto a grandes provações e a uma real noite escura. Apesar disso, ele não abandonará nunca o caminho da vocação. Deus lhe revelou a Sua onipotência, e para o futuro fundador da ordem da Imaculada Conceição de Maria previu um outro tipo de martírio. Os últimos dois anos na ordem dos escolápios são por ele recordados com dor: “Muitos sabem que eu me encontrava na Con-

19 gregação para mimmais cara que a vida das Escolas Pias, naquela caríssima Companhia dos Pobres da Mãe de Deus. [...] Além disso, eu permanecia nesse santíssimo grêmio atado não apenas por laços de amor, mas também pelo solene juramento de perseverar nele para sempre. Eu queria que aqueles fossem indissolúveis, [enquanto] que este foi dissolvido por aquele a quem foi transmitido o poder de atar e de desatar, pelo vigário do Santíssimo Jesus Cristo e sucessor legal de S. Pedro, pelo papa Clemente X. Mas a esse ponto chegou – oh! – através de que via crucis! Além disso, atormentavam-me e quase me torturavam enormes complicações, escrúpulos, dúvidas, inquietações, receios. Porquanto quem teria uma consciência tão frouxa para sem eles passar do estado dos votos [religiosos], ainda que simples, ao estado puramente leigo?” (FDR, pp. 1456-57). Os sofrimentos sentidos da parte dos coirmãos e a luta interior pela fidelidade à vontade de Deus são por ele vivenciados em união com o Salvador sofredor. Nesse período surgem as duas coleções de sermões passionais, e no texto do Oferecimento, preparado na oração, na primeira frase aparecerá a exclamação que é o fundamento da sua fé e a razão do seu serviço a Deus: “Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo Crucificado. Amém.” (Oblatio, p. 1422). Apela Àquele que até o fim confiou no Pai, que cumpriu perfeitamente a Sua vontade, que fez de si o holocausto para a salvação do mundo. No momento talvez mais importante da vida de S. Estanislau Papczyński, a sua Páscoa torna-se o Cristo. Anos depois, num comentário às descrições evangélicas da ressureição, será por ele chamado Redivivus. A fonte do adjetivo redivivus (novamente utilizado, que volta, renovado, apto para a vida, renascido e ressuscitado) é o substantivo redivivum (material velho de construção reutilizado). Graças à fidelidade ao Crucificado, S. Estanislau experimentará repetidas vezes a passagem das trevas à luz, da morte à vida, ele mesmo tornando-se redivivus – pedra rejeitada, mas no final tão útil para o Reino de Deus. Perguntas: 1. Quais acontecimentos da minha vida considero como participação na paixão, morte e ressurreição de Cristo? Será que posso hoje dizer que o meu caminho de vida e de fé é um caminho pascal?

20 2. Qual experiência de sofrimento foi ou é para mim a mais penosa? Até que ponto a presença do pecado é para mim uma experiência que gera o sentimento de rejeição, de solidão, ou unicamente de mágoa diante de Deus, das pessoas e de mim mesmo? Será que sou capaz de vivenciar o meu pecado na presença do amoroso Deus, que continuamente me procura e por mim espera? 3. Aminha vocação religiosa relaciona-se com a experiência da comunidade: Até que ponto é isso um caminho de alegria, e até que ponto de tristeza e de dificuldade? Será que me sinto uma parte dessa comunidade, ou talvez uma pessoa de fora? A quem e o que devo perdoar, caso ainda não tenha feito isso? A quem e por que devo pedir perdão?

21 Wojciech Skóra MIC Sulejówek, Polônia Fevereiro 2022 A vocação do Fundador – as dores do parto no Espírito Santo Bíblia: At 15,36-40; 16,1-10 Depois de alguns dias, Paulo disse a Barnabé: “Voltemos para visitar os irmãos em cada cidade onde anunciamos a palavra do Senhor, para ver como estão”. Barnabé queria levar também João, chamado Marcos. Mas Paulo achava que não se devia levar junto aquele que na Panf ília os havia abandonado, em vez de acompanhá-los na missão. A discordância se agravou a tal ponto, que cada um foi para seu lado. Barnabé tomou consigo Marcos e embarcou para Chipre. Paulo escolheu Silas e partiu, recomendado pelos irmãos à graça do Senhor; percorrendo a Síria e a Cilícia, ia confirmando as Igrejas. Paulo foi para Derbe e Listra. Havia em Listra um discípulo chamado Timóteo, filho de uma judia que abraçara a fé, e de pai grego. Os irmãos de Listra e Icônio davam bom testemunho dele. Paulo quis então que Timóteo partisse com ele. Tomou-o consigo e circuncidou-o, por causa dos judeus que se encontravam nessas regiões, pois todos sabiam que o pai dele era grego. Percorrendo as cidades, Paulo e Timóteo transmitiam as decisões que os apóstolos e anciãos de Jerusalém haviam tomado e recomendavam que fossem observadas. As Igrejas fortaleciam-se na fé e, de dia para dia, cresciam em número. Paulo e Timóteo atravessaram a Frígia e a região da Galácia, pois o Espírito Santo os havia impedido de proclamar a Palavra na Ásia. Chegando perto da Mísia, tentaram entrar na Bitínia, mas o Espírito de Jesus os impediu. Então atravessaram a Mísia e desceram para Trôade. Durante a noite, Paulo teve uma visão: na sua frente estava, de pé, um macedônio que

22 lhe suplicava: “Vem para a Macedônia e ajuda-nos!” Depois dessa visão, procuramos partir imediatamente para a Macedônia, pois estávamos convencidos de que Deus acabava de nos chamar para anunciar-lhes a Boa-Nova. Fontes: Testamento segundo, 1699-1701 Ano do Senhor de 1701. Dia 10 de abril. Confirmo tudo o que acima foi escrito. Embora a nossa pequenina Congregação já seja uma Ordem de votos solenes segundo a Regra da imitação das dez Virtudes da Beatíssima Virgem Maria, [Regra] que com a máxima humildade aceito e segundo a qual quero novamente fazer a profissão solene, reservo-me, no entanto, uma melhor disposição quanto às casas, caso ainda esteja vivo. Se, no entanto, com a concordância dos Frades o Frei Joaquim for novamente confirmado como coadjutor, então eu o obrigo, sob a ameaça do terrível julgamento de Deus, a que nada mude no hábito, no nome da Ordem, nem que ouse arruinar impiamente o culto da Beatíssima Virgem Maria, a cuja Majestade, ainda que indignos, nos entregamos pela recitação de todo o Of ício da Imaculada Conceição e de todo o Rosário. O mesmo diz respeito à introdução do uso da aguardente, que considere como proibida para ele e para todos, visto que essa bebida, graças ao oculto amor de Deus, é algo estranho para a nossa comunidade. Embora mal possa assinar com a mão gravemente doente, [faço isso] no entanto, com a mente inteiramente sadia e por Deus dominada. Estanislau de Jesus e Maria Prepósito da Ordem da Imaculada Conceição da SVM Reflexão A história de vida de S. Estanislau Papczyński – como vimos na reflexão anterior – é uma série de doenças, acidentes, insucessos, incom-

23 preensões e humilhações. Em grau não inferior está assinalada pelo mistério da Cruz a sua missão de Fundador da Congregação dos Marianos. A leitura dos seus textos preservados, especialmente de Fundatio domus recollectionis, permite que nos conscientizemos do caminho que percorreu juntamente com a Igreja, desde a primeira inspiração do Espírito Santo, que o estimulou à fundação da Sociedade da Imaculada Conceição da Santíssima Virgem Maria até o formato definitivo que a Congregação assumiu um pouco antes da sua morte. A primeira luta que teve de travar foi consigo mesmo, comparando a sua fraqueza com a grandeza do dom que parecia ultrapassar inteiramente as suas forças. Da perspectiva dos poucos anos de existência da pequena comunidade religiosa (eremítica), S. Estanislau descreve os seus primórdios no opúsculo Fundatio domus recollectionis. As primeiras frases nos introduzem na natureza extraordinária desse fato, devido à condição do seu ator principal. O Pe. Papczyński confessa sinceramente: “Mostrou-se isso da forma mais clara em mim, o mais miserável, o pecador mais digno de desprezo, o mais desprezível (vilissimus), o instrumento mais inadequado [utilizado por Deus] para a fundação da última e mínima Congregação dos Padres da Santíssima VirgemMaria sem mácula concebida. Havia em mim: o espírito inadequado, a virtude nenhuma, a prudência pequena, tudo pequeno demais, [adequado] antes ao sonho do que ao empreendimento de tão grande tarefa” (FDR 145). Se, portanto, alguém julgasse que a origem da postrema et minima Congregatio foi um mérito do zelo, da aptidão ou da experiência do Pe. Papczyński, acabaria sendo imediatamente removido do erro. Convencido do caráter sobrenatural dos acontecimentos passados e presentes relacionados com a fundação da ordem, o Fundador se chama instrumentum nas mãos do Todo-Poderoso. Mais tarde, na obra Inspectio cordis, observará que devem ter passado por uma experiência semelhante os apóstolos de Jesus, em cujas costas Ele depositou o destino da evangelização do mundo. Enfatiza que a pobreza pessoal e interior deles aponta nitidamente para a majestade do Autor principal. De uma forma que lhe é típica, S. Estanislau retira desse fato importantes implicações ascéticas: “E tu, aprende a avaliar as pessoas não segundo a sua origem, mas segundo as virtudes; não as avalies pela forma como proclamam a palavra de Deus, mas pela obra que empreendem e

24 que executam. E, finalmente, consciente da tua insignificância (vilitas) e indignidade, agradece a Deus porque, deixando de lado outras pessoas melhores, convocou a ti ao estado religioso, como que ao grêmio apostólico” (IC, p. 941). O Padre Papczyński não se identifica com os apóstolos como o fundador de uma nova comunidade religiosa, mas faz isso em razão da sua vocação ao estado religioso, que – depois da filiação batismal – considera como a maior graça de Deus. Justamente por essa razão, após obter a dispensa dos votos simples na ordem das Escolas Pias, imediatamente professa a chamada Oblatio. Eis o relato desse acontecimento: “Aquela Divina Majestade sugeriu-me, diretamente antes da dispensa, que eu – quando daqueles [votos fosse dispensado] – nesse mesmo ato, por outros voluntariamente me comprometesse diante de Deus, o que fiz pelo oferecimento [de mim mesmo] pronunciado de coração, em público, ainda que feito em voz bastante baixa [...]. E aquele frade que me concedeu a dispensa em nome do superior geral confirmou [esse oferecimento] com a exclamação: ‘Que Deus fortaleça o que realizou em ti!’” (FDR, p. 1455). A partir daquele momento coube a S. Estanislau viver por dois anos sem uma comunidade religiosa, o que apenas intensifica nele um desejo ainda maior desse estado de vida. O carisma que o estimulou à instituição de uma nova comunidade religiosa estava relacionado com o desejo de continuar trilhando o caminho dos conselhos evangélicos. Esse período de solidão, de expectativa e de provação será por ele encerrado com a conclusão retórica: “Efetivamente, fortaleceu”, referindo-se ao propósito da Divina Providência. A tal ponto está convencido do papel primordial de Deus no processo da origem da ordem dos marianos que no Testamento fará a seguinte observação, como que renunciando ao título de fundador: “Esta pequenina Congregação, como seu indigno superior, pelos séculos e com a máxima piedade eu a recomendo ao meu Senhor, Jesus Cristo, e à seletíssima Virgem, Sua Mãe Maria, como os verdadeiros e únicos fundadores, Diretores, Protetores e Padroeiros desta pequenina Congregação da Imaculada Conceição, Auxiliadora dos Falecidos” (PZ, p. 1496). Uma outra dimensão da Páscoa do Fundador é a sua participação na dramática história da origem da comunidade e a necessidade da constante verificação da visão primitiva sob a influência dos aconteci-

25 mentos, das novas inspirações e das decisões dos superiores da Igreja. A história da fundação da nova ordem e da sua aprovação pode constituir um singular locus theologicus para a investigação dos caminhos de Deus, que afinal é livre na escolha das formas de realização dos Seus propósitos. Fazendo uma reflexão sobre os primórdios da ordem, o Fundador dos marianos chama a atenção para três aspectos da ação divina: Deus é o Autor do plano e o Executor da obra, valendo-se de meios pobres, e com a Sua onipotência afasta todas as circunstâncias mais desfavoráveis. Observa o Pe. Papczyński: “Apesar das inúmeras dificuldades que se apresentam como obstáculo, a bondade e a sabedoria divina iniciam e promovem o que querem, ainda que os meios, segundo o julgamento humano, sejam a isso inadequados. Porquanto não existe nada de impossível para o Todo-Poderoso” (FDR, p. 1455). A última frase é implicitamente um eco da evangélica confissão do arcanjo Gabriel da cena da anunciação (cf. Lc 1,27), bem como da conclusão de Jesus do ensinamento sobre o celibato pelo Reino de Deus (cf. Mt 19,10-12). Nos mencionados casos a onipotência de Deus manifesta-se primeiramente no contexto da impotência humana relacionada com a fiel e ardente oração (esterilidade de Isabel). Pode-se também percebê-la no mistério do carisma evangélico da virgindade, cuja aceitação e cujo aprofundamento não são dados a todos. O Padre Papczyński trilha ambos os caminhos: da experiência da própria fraqueza e da interpretação dos misteriosos desígnios divinos. A Ordem da Imaculada Conceição podia ter surgido já no início de 1671 na diocese de Cracóvia. No entanto foramnecessários mais de dois anos para que a visão espiritual presente na alma do Santo começasse a concretizar-se na diocese de Poznań e em formato eremítico, o que se afastava radicalmente do modelo descrito em Norma vitae. Isso não impede ao Fundador reconhecer a inesperada presença no eremitério de Korabie do bispo Jacinto Święcicki e a sua decisão de conferir os estatutos eremíticos à pequena comunidade como uma manifestação da proteção divina. “Ao meu empreendimento – recorda – não faltou a ajuda celestial. Porquanto a Divina Majestade enviou para me ajudar um mediador, um varão – digo – distinto, piedoso, sábio, o Excelentíssimo Dom Estanislau Jacinto Święcicki, Bispo de Spigaci, arquidiácono e oficial de Varsóvia, que recebeu do Bispo de Poznań a ordem de que,

26 ao visitar o seu arquidiaconato, visitasse esse eremitério e os eremitas que ali encontrasse” (FDR, p. 1465). Passaram-se mais anos para que o primitivo ideal de uma Congregação dedicada à propagação do culto da Imaculada Conceição da Santíssima Virgem Maria fosse ampliado para o apostolado dos falecidos que se encontram no purgatório (sem dúvida em consequência de pelo menos três visões das almas do purgatório que o Pe. Papczyński teve) e, do lado canônico, para que obtivesse a aprovação segundo o direito episcopal em 1679. As etapas iniciais do desenvolvimento da ordem estão mui intimamente relacionadas com o contexto eclesiástico e com as decisões dos ordinários de Cracóvia e de Poznań. Aquele – apesar da visível simpatia e solicitude pelo Pe. Estanislau Papczyński – recusa o apoio ao seu projeto; este abre as portas da sua diocese, mas só concederá a aprovação oficial passados nove anos. Não temos acesso direto à concepção primitiva da comunidade, articulada na primeira versão da Regra de vida. Aquilo que é a base do nosso entendimento sobre a visão inscrita na alma do Fundador permanece sendo a Oblatio. Papczyński expressa ali o desejo de fundar a Sociedade da Imaculada Conceição e da entrega total de si mesmo como religioso a serviço da Igreja. O próprio nome Societas sugere que estava pensando numa comunidade apostólica, dedicada à obra da evangelização e da santificação do povo de Deus, provavelmente da sua parte mais pobre e mais negligenciada. Quando – em razão do decreto do bispo Jacinto Święcicki – a visão primitiva assume um formato eremítico em Puszcza Korabiewska, cujo caráter esse convento preservaria até a morte do Fundador, S. Estanislau aceita humildemente a decisão da Igreja como vontade de Deus para aquele momento. Como que uma recompensa por esse ato de obediência é a instituição da segunda casa religiosa dos marianos em Góra Kalwaria/Monte Calvário (então Nowa Jerozolima/Nova Jerusalém). O bispo Estêvão Wierzbowski, ordinário de Poznań, permite que os marianos assumam certas ações apostólicas, que de maneira especial imprimem a visão carismática do Fundador diante dos peregrinos que vinham ao santuário de Nova Jerusalém. Quando ao menos em certo grau começa a realizar-se aquilo que havia sido depositado pelo Espírito Santo no coração de S. Estanislau,

27 surge uma nova crise, especialmente após a morte do bispo Wierzbowski. Desce sobre a Congregação uma nova onda de acusações e calúnias, abalando o direito da existência do Instituto de votos simples. Infelizmente, dá ouvido a essas acusações o novo pastor da diocese, que por pouco não dissolve a ordem. Isso abalou a vocação da maioria dos membros, e também o próprio Fundador mergulhou em dúvidas quanto à justeza do seu empreendimento. Dirigiu-se então aos superior geral dos escolápios pedindo um conselho: continuar o novo caminho religioso ou voltar à Ordem das Escolas Pias? Esse já o terceiro pedido do Pe. Papczyński dirigido à sua ordem precedente mostra como era cheia de trevas espirituais e de adversidades interiores a missão de fundar a ordem da Imaculada Conceição, como era dolorosa a tarefa de carregar a responsabilidade por essa obra que nascia. Somente a convicção de que esse era o desejo de Deus e a obediência aos guias espirituais permitiam que ele seguisse adiante. Profundamente adoentado e enfraquecido pela severidade de vida, em 1690 empreendeu a tentativa de obter a aprovação pontif ícia. Com esse objetivo, dirigiuse pessoalmente a pé até Roma. Talvez seja justamente nessa dramática e dif ícil peregrinação do Padre Fundador, que ele realizou no outono e no inverno, portanto numa época extremamente desfavorável, que mais nitidamente se manifeste o seu grande amor à sua comunidade religiosa. Em Roma, desditosamente a sua vinda coincidiu com a morte do papa Alexandre VII. Tendo-se certificado de que a Santa Sé não estava disposta a aprovar novas ordens com regra própria (conhecem-se, na realidade, poucas exceções), buscou apoio na ordem dos franciscanos observantes, que assumiria o desvelo espiritual pela Ordem dos Marianos. Em razão do nome e da espiritualidade mariana, dentre as regras religiosas existentes, a mais próxima pareceu-lhe ser a regra da Ordem das Monjas da Imaculada Conceição da SVM (das chamadas conceicionistas). Necessário se tornava apenas obter a aprovação pontif ícia, mas o precário estado de saúde não permitiu ao Pe. Estanislau permanecer em Roma até a eleição do novo Santo Padre. Então voltou à pátria sem nada. A escola da confiança no Espírito Santo liga-se com a postura de ouvir e de obedecer, “que é onipotente, supera todas as dificuldades e sempre leva até o fim aquilo que começa” (IC, p. 684). A união do

28 Deus todo-poderoso com o ser humano obediente conduz ao formato das obras pretendido pelo Criador e reconhecido aos poucos pelo ser humano. Amadurecendo na postura da obediência religiosa, S. Estanislau Papczyński atinge a capacidade de ouvir as inspirações de Deus e de submeter-se a Ele como que contrariando a si mesmo, o que permite não apenas empreender uma obra humanamente impossível, mas também incessantemente corrigir o ideal da comunidade religiosa com que sonhou, graças aos sinais do tempo recebidos de Deus. O formato definitivo da Ordo Immaculatae Concepionis Mariae, esboçado no decorrer da aprovação pontif ícia em 1699, parecia distanciar-se sensivelmente da primitiva visão do Fundador. Na sua extensa biografia de Estanislau Papczyński, o Pe. T. Rogalewski apresenta duas opiniões divergentes a respeito da reação do Fundador à aprovação obtida. Seguindo a Positio, aponta que ele não estava inteiramente satisfeito com o cumprimento da missão que havia confiado ao Frei Joaquim Kozłowski quando se familiarizou mais de perto com o conteúdo dos documentos por ele trazidos. Mas num outro lugar, sem fornecer a fonte, escreve da enorme alegria pela grande graça “de ter obtido a Regra da Imitação das Dez Virtudes” como regra de vida para os marianos. A maior decepção podia estar relacionada com o não reconhecimento pela Santa Sé da Norma vitae, diversas vezes corrigida como a constituição da ordem. Ao professar os votos solenes alguns meses antes da sua morte, Papczyński tinha a consciência de que o término da sua missão fundadora havia sido assinalado pela Divina Providência. Em seu Testamento registraria com convicção que “a todos os atuais e a cada um dos meus futuros coirmãos e companheiros, para sempre confio a mais maravilhosa fundação: a Providência do Deus Bondosíssimo” (PZ, p. 1499). Perguntas: 1. Quais das inspirações que surgiram em minha mente e em meu coração que considero como procedentes do Espírito Santo? O que, por sua vez, tem-se mostrado como invenção minha?

29 2. Com se apresenta o meu discernimento, com a Igreja e dentro da Igreja, da minha vocação para o Reino de Deus? Como reajo às situações “conflitantes” da minha visão com o discernimento dos superiores e dos irmãos da comunidade? 3. 3. Por qual(quais) obra(s) na Igreja sinto-me especialmente responsável? Por que as considero como tão importantes?

30 Jacek Rygielski MIC Londres, Inglaterra Março 2022 Padre Casimiro Wyszyński: a páscoa da fé – detido no caminho da sua piedade Bíblia: Eclo 44,1-2;7-15 Façamos o elogio dos homens ilustres, nossos antepassados através das gerações. O Senhor manifestou uma imensa glória, a sua grandeza desde os tempos antigos. Todos esses alcançaram glória entre as gerações do seu povo, já louvados desde os dias de sua vida. Os que deles nasceram deixaram um nome que faz recordar os seus louvores. Outros não deixaram lembrança alguma, desaparecendo como se não tivessem existido. Viveram como se não tivessem vivido, e seus filhos também, depois deles. Agora, porém, falemos dos homens de bem, pois seus gestos de bondade não foram esquecidos; eles permanecem com os seus descendentes: seus netos são a sua melhor herança. A descendência deles mantém-se fiel às alianças e, graças a eles, também os seus filhos. A descendência deles permanece para sempre, e sua glória não lhes será tirada. Seus corpos estão sepultados na paz e seu nome dura através das gerações. Os povos proclamarão a sua sabedoria e a assembleia vai celebrar o seu louvor. Fontes: Carta circular de 23 de dezembro de 1737 Irmão Casimiro Wyszyński, da Ordem da Imaculada Conceição da Santíssima Virgem Maria da Congregação Polonesa dos Marianos Superior Geral e Servo.

31 Eis que o Todo-Poderoso, cuja propriedade é erguer do esterco o pobre para o colocar entre os príncipes, com os votos de todos os membros do Capítulo chamou-me do deserto para assumir a tarefa pastoral de preparar o caminho da Vossa salvação. Foi Ele que, por inspiração do Espírito Santo, induziu os Vossos corações a se submeterem à vontade de Deus. Devo, portanto, assumir o peso de superior em nossa Congregação, para ser como a voz que clama no deserto para endireitar as veredas de Deus. Por isso, pela presente carta declaro a minha prontidão para cumprir a obrigação do serviço diante de Vós. Pela profundeza da divina misericórdia eu Vos suplico, portanto, como pai, para que estejamos prontos, puros e justos para a vinda de Jesus Cristo nosso Juiz. Cordialmente recomendo a observância da total disciplina religiosa, da submissão diante dos superiores, do amor fraterno, do cumprimento das antigas e atuais disposições do Capítulo. Lembrai-Vos também em Vossas piedosas orações de mim pecador, para que devida e corretamente possa cumprir a obrigação sobre mim imposta. Permanecei no Senhor. Expedida no convento de Skórzec no dia 23 de dezembro do Ano do Senhor 1737. Ir. Casimiro Wyszyński – Superior Geral Reflexão A imitação de Cristo e o vínculo com Ele faz com que toda pessoa escolha o caminho da sua Páscoa pessoal, que se realiza numa comunidade concreta, e sobretudo na comunidade da Igreja. A Páscoa não é somente uma simples e tranquila passagem de um ponto ou acontecimento da vida a outro, mas relaciona-se com frequência com a dor, com o aniquilamento ou com a total morte e ressurreição, ou seja, com a volta à vida por obra de Deus numa nova realidade. Toda a vida do ser humano tem uma dimensão pascal, o que significa que ele tenta sempre “passar” dos apegos desordenados e pecaminosos à vida na graça divina e que trava uma incessante luta entre a realização do propósito divino para a sua vida e a realização dos seus próprios planos, ou dos que têm em relação a nós outras pessoas.

32 O Pe. Casimiro Wyszyński, que se distinguiu pela piedade e pela retidão de caráter, teve de lutar entre os planos de seu pai para a sua vida (carreira de funcionário) e os seus próprios sentimentos e desejos, e com o discernimento da sua vocação de vida. Um dos seus desejos era realizar uma peregrinação, que era a expressão de uma profunda piedade na vida de fé e com frequência se relacionava com a dimensão penitencial. A peregrinação possui igualmente a sua dimensão escatológica: a pessoa a caminho de um lugar santo, impelida pelo desejo de um encontro mais próximo com Deus, é a imagem da peregrinação humana pela vida ao reino de Deus. O Pe. Casimiro, quando jovem, resolveu dirigir-se a Roma sem o conhecimento e o consentimento dos pais, mas foi detido no seu caminho por seu irmão, a pedido da mãe deles. No entanto esse desejo permaneceu nele, embora os reais motivos da decisão de realizar uma peregrinação, ainda a um lugar tão distante, nos sejam desconhecidos. Por isso, alguns anos mais tarde, decidiu novamente realizar uma peregrinação a Santiago de Compostela, ao túmulo de S. Tiago. Menciona isso em seu testemunho seu irmão mais velho, Miguel Wyszyński, escrevendo que “fez o voto de peregrinar a S. Tiago de Compostela. Eu lhe perguntei por quê. Ele não respondeu, apenas me pediu que eu providenciasse para ele um mísero traje de peregrino”1. Dessa vez, no entanto, por intermédio do irmão, pediu a bênção dos pais. O pai concordou com a peregrinação do filho após ouvir a declaração sobre a importância e a irrevogabilidade do voto por ele feito. Em que consistia o voto feito e com que se relacionava – nenhuma fonte informa. Novamente não conseguiu chegar ao objetivo da viagem. Dessa vez, no caminho da piedade ele foi detido pela doença e, embora já estivesse perto da fronteira da Espanha, voltou a Roma, onde obteve a autorização para trocar a peregrinação ao túmulo de S. Tiago por uma visita às igrejas romanas e pelo cumprimento de atos de caridade. Na Cidade Eterna encontrou igualmente o Pe. Joaquim Kozłowski, que lhe contou a história da dispersão da ordem dos marianos e da influência que sobre 1 Testemunho de Miguel Wyszyński a respeito do irmão. In: Najstarsze świadectwa o Słudze Bożym o. Kazimierzu Wyszyńskim, trad. e red. Z. Proczek, Warszawa-Stockbridge, 2005, p. 22.

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